Alguém já disse que uma forma de felicidade é a leitura - Jorge Luis Borges, literato argentino. Vou encontrando também a minha em companhia dos livros, com a certeza de infindáveis descobertas. "Treze e outros contos", de Sérgio Sales, é mais uma delas. Obra com contos bem humorados ou reflexivos. Conheça aí um deles, em mais uma sugestão de livros para serem conferidos e apreciados. E de agradável leitura.
Título: Treze e outros contos
Autor: Sérgio Sales
Editora: Gráfica Virgem de Nazaré
Páginas: 81
Ano: 2007
Tema: Contos
Sem saída
Eu morava num lugar bastante movimentado no centro comercial da cidade. Era um local amplo e bem iluminado, com enormes janelas, por onde entrava ventilação.
Apesar do barulho intenso, característico do lugar, eu gostava de morar ali. O som das buzinas dos carros que passavam, e dos alto-falantes, não me incomodava. Até mesmo alguns disparos feitos por policiais, em perseguição aos inúmeros bandidos, sempre presentes por ali, não chegavam a me importunar.
Eu tinha uma aprazível vista do mar, bem ali, em frente de onde eu morava.
Sombrinhas coloridas, garotas bonitas, carros esporte e gente por todos os lados, indo e vindo da praia, faziam minha alegria nos ensolarados finais de semana.
Nos outros dias, eu me contentava em olhar o mar e as garotas que trabalhavam no comércio. Também admirava os rapazes, e as crianças que transitavam pelo local.
Gostava também de observar os idosos, com sua calma peculiar, e os animais. Esses últimos me chamavam a atenção, por sua incrível racionalidade.
Morei por algum tempo nesse lugar mas, num certo dia, fui obrigado a mudar de endereço. Aliás, eu já contava com a mudança a qualquer momento, e não fiquei aborrecido. Achei que seria bom conhecer outro lugar, outras pessoas, outros ares. E assim, fui alegremente morar no meu novo endereço.
O lugar onde fui morar, ao contrário do anterior, não era em frente à praia, e nem tinha a agitação do comércio, entretanto, o som de disparos de arma de fogo era mais frequente, principalmente durante a noite.
Uma pequena casa, mal iluminada, em um bairro distante do centro, era a minha nova morada, e eu agora vivia com uma família de classe média baixa. O marido achava-se desempregado e o comando do lar ficava por conta da mulher, que trabalhava como vendedora de cosméticos, ou coisa que o valha.
As brigas eram constantes entre o casal por causa das bebedeiras do marido que, deprimido pela falta de trabalho, entregava-se ao álcool em excesso, quase todos os dias.
Em diversas ocasiões, eu o vi agredir a mulher, com socos e pontapés, tentando conseguir pela força, algum dinheiro para a compra da bebida.
O casal tinha uma filha de dez anos que nessas ocasiões corria a pedir socorro aos vizinhos, pois se ficasse em casa, seria também espancada pelo pai furioso e bêbado.
Eu não interferia nos problemas da família, apesar de não concordar com o comportamento desumano do marido, naqueles momentos.
Compadecia-me da mulher e da garotinha, que sofriam muito, nas mãos daquele brutamontes.
Eu não gostava de morar com eles. sentia falta da praia e das pessoas alegres e felizes com as quais eu convivia no tempo em que residia no centro comercial.
Lembro-me de quando fui morar com eles. Receberam-me com sorrisos, muita festa, e fizeram até brindes pela minha chegada.
Disseram que eu seria de grande utilidade para a família, e a pequena falou que eu era forte e bonitão.
Fiquei tão lisonjeado com tudo isso, que nem me importei de saber, que ocuparia um pequeno cantinho na cozinha.
Mas o tempo foi passando e, apesar de saberem que eu era muito importante para a família, ninguém mais ligava para a minha presença naquela casa.
Isso me entristecia um pouco. Aliás, me entristecia bastante.
Num certo dia, durante uma de suas bebedeiras, o marido quebrou a casa toda, espancou a mulher como de costume, e agrediu-me também, me jogando no chão com violência.
Eu já não era novo e forte, e na queda, quebrei uma das pernas. senti vontade de ir embora dali... mas não fui.
Trago na minha lembrança os tempos em que eu morava em frente à praia, no centro comercial, lembro-me das sombrinhas coloridas, do cheiro do mar, das garotas do comércio, do vai e vem das pessoas. Ah! Como eu gostaria de poder voltar a morar lá.
Mas, infelizmente, não posso mudar de endereço por minha livre vontade.
Afinal... sou apenas, um simples armário de cozinha.
Afinal... sou apenas, um simples armário de cozinha.
(Conto de Sérgio Sales, publicado em Treze e outros contos - 2007)
Sérgio Sales, paraense nascido em Belém (1955), é músico, cantor, compositor, andarilho das estradas do Brasil, amante dos rios e das florestas, cantador de trovas e cordéis e estreante como contista com o livro Treze e outros contos (de 2007, sendo relançado em 2010).
Participou em 2010 da coletânea Contos de Outono (lançada pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores, com o conto Enfim conseguiremos) e em 2013 publicou seu primeiro romance Amor, meu grande amor.
Mais informações sobre o autor em:
- navegandonavanguarda.blogspot.com.br
- novopapeldeseda.blogspot.com.br