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terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Cabanagem - Documentos Ingleses (David Cleary)

A história tem cada surpresa inimaginável! Rapaz, e não é mesmo! Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, sabias que houve planos entre os americanos e alemães de invadir o Brasil? E seria pelo Norte e Nordeste. Eu, hein! Se retrocedermos mais, há cerca de 180 anos, vemos uma guerra terrível acontecendo na Amazônia, que foi a Cabanagem, considerada a mais sangrenta em território brasileiro. Agora espia só!  Poderia ter ocorrido também uma invasão de potências mundiais nesse período, tipo França e Inglaterra, com suas esquadras e exércitos dispostos a se meter na confusão e com aval do governante brasileiro para mandar bala em todo mundo, digo, nos pobres cabanos. Deus me livre! Talvez nem pudesse estar matutando agora nessas coisas... Isso veio ao conhecimento popular com a publicação desse livro em 2002, como resultado da pesquisa do historiador David Cleary, em documentação na Inglaterra. Vou te contar mais ou menos um pouco do livro. Repara...

A Cabanagem foi um dos mais trágicos episódios na História do Brasil (o mais sangrento), com uma mortandade de cerca de 20% dos 150 mil habitantes encontrados na Província do Grão-Pará, segundo registros históricos. Alguns autores até elevam esses números, dada a gravidade.
 

A revolta aconteceu no século XIX, entre os anos de 1835 a 1840, por conta da insatisfação da população (em sua maioria eram negros, mestiços e índios) e da elite local (fazendeiros e comerciantes), que se uniram contra o governo regencial pela independência da região. Nos desdobramentos, eles assassinaram o presidente da província e escolheram um representante de seus interesses, que governaria com autonomia.
A maior parte dos revoltosos era de população que vivia em condições precárias (de miséria, fome, violência e de abandono), sendo denominados cabanos por conta de suas rústicas moradias às margens dos rios, as cabanas (sacou donde vem o termo Cabanagem, né!).
 

Os registros mais importantes dessa revolta estão na obra de Domingos Antônio Raiol (o Barão de Guajará), publicada em vários volumes entre 1865 e 1890, intitulada "Motins Políticos" ou "História dos Principais Acontecimentos Políticos da Província do Pará, desde o ano de 1821 até 1835". O barão foi o maior de todos os divulgadores e, às vezes, a única fonte de quase todos os relatos posteriores.

Sabe-se que a história tem episódios que permanecem desconhecidos ou viram especulações e hipóteses contestáveis na falta de registros. Cabanagem - Documentos Ingleses, organizado por David Cleary, desde sua publicação em 2002, é um livro com equiparações de relevância similar ao clássico de Domingos Raiol, por somar fatos desconhecidos nessa revolta, baseando-se na documentação epistolar da Marinha Inglesa (que transitava na região, acompanhava o movimento com interesse e relatava em seus diários de bordo) e nos registros
nas embaixadas e consulados ingleses. O historiador teve a sacada de vasculhar essa produção ao se deparar com o tráfego na leitura de "Motins Políticos" e na ação diplomática. Assim, os documentos foram buscados na década de 1990, sendo repassados ao governo paraense numa importante contribuição histórica.
 
Esta é a origem do livro e o fato mais interessante é a revelação do plano de Diogo Antônio Feijó, governante no período regencial, de reunir um exército com o apoio dos governos de Portugal, Inglaterra e França para recuperar a província. Para isso os respectivos embaixadores foram sigilosamente convocados, como mostra a correspondência inglesa de 17 de dezembro de 1835. As tropas chegariam sem alardes, uniriam forças com o Império e teriam aval para o massacre dos revoltosos na Amazônia. E tudo seria feito na surdina, pois a Constituição do Império proibia terminantemente a admissão de tropas estrangeiras no território do Brasil sem o consentimento da Assembleia Geral. Imagina o escândalo que seria! 


Felizmente, por conta de interesses políticos, o plano não foi adiante.  Olha que essas nações tem histórias terríveis no colonialismo! Poderia ter ocorrido um extermínio maior do que os registros históricos apontam, principalmente quando percebemos um olhar racista em vários documentos ingleses desse livro, que temiam pela população branca e consideravam os mestiços inferiores. Vamos colocar melhor as coisas sem generalizar, esse era o contexto da carta do Ministro Britânico no Rio de Janeiro.
Algumas linhas: "A facção vitoriosa, ou seja, a tropa de selvagens que agora domina o Pará, consiste principalmente de índios (deles existe uma numerosa população entre as Províncias do Pará e Maranhão) e de várias raças mestiças entre índios e negros, classificadas com denominação geral de Cafuzos, estando, creio eu, entre as variedades mais sem valor da espécie humana. Se esses homens conseguirem se manter, não há dúvida de que irão exterminar a raça branca até onde estiver ao seu alcance... Não há, entrementes, nenhuma probabilidade de que os índios ou os negros venham estabelecer qualquer coisa parecida com um governo ou uma forma regular de sociedade... Se a revolução não for dominada agora, a grande e fértil Província do Pará pode ser considerada totalmente perdida para o mundo civilizado." (Trecho da carta datada em 10/11/1835).
Some-se a isso o roubo e morte da tripulação do navio inglês Clio, que foi saqueado pelos cabanos em Salinas. Os documentos apontam uma exigência de reparo e contrapartida ao incidente. Sem contar no interesse e disputa histórica da França na região do Contestado. Será que os ânimos franceses não teriam sido diferentes se o ouro de Calçoene fosse descoberto nesse período e não em 1890? (Essa parte são conjecturas de um leitor que gosta de viajar com a história).
 
Conjecturas tem muitas. A realidade no livro é que as cartas não revelaram interesse nesse plano por parte dos governos convocados. Encontramos linhas de rejeição sobre “a menor possibilidade de o governo de Sua Majestade ou o governo francês anuírem com os desejos do regente, ou consentirem em ordenar uma operação militar, com base em um pedido formulado de maneira tão imprecisa e informal”. Na real, eles consideravam o Feijó incompetente na resolução do movimento (outros aconteciam também no país) e, sem dúvidas, seria uma violação da Constituição.

O livro tem essa importância: 

De revelação de um plano para participação estrangeira na repressão à Cabanagem de forma mais acirrada (os ingleses tem um episódio bélico de bombardeamento de Belém, mas Feijó buscava mais que isso) 
Por mostrar o olhar dos ingleses na região;
E descrever alguns fatos do cotidiano nessa revolta, como o incidente que atingiu o navio mercante inglês. Sobre isso, vemos um relato detalhado na carta de 18/12/1837, pelo Ministro Inglês (ah! esse navio estava com uma carga até as boca de armas - quem com ferro fere...)
 

Por essas e outras, a obra é considerada uma das principais sobre a Cabanagem. São mais de 100 correspondências e a edição é bilíngue. O livro está estruturado com um relato das buscas do autor, seguindo-se as cartas em inglês e português.

Em Macapá, está a disposição para consultas na Biblioteca Ambiental da SEMA. 

Agradeço ao Newton Marcelo a doação que muito enriqueceu nosso acervo.

Título: Cabanagem - Documentos Ingleses
Autor: David Cleary (organizador)
Editora: SECUL/IOE (Secretaria de Cultura e Imprensa Oficial do Estado do Pará)

Ano: 2002
Páginas: 274
Tema: Amazônia / História / Cabanagem

 BIBLIOTECA AMBIENTAL DA SEMA
Macapá - Centro