As postagens desse blog são em caráter informal, de apego ao saber popular, com seu entusiasmo, exageros, ingenuidade, acertos e erros.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

"Treze e outros contos" (Sérgio Sales)

Alguém já disse que  uma forma de felicidade é a leitura - Jorge Luis Borges, literato argentino. Vou encontrando também a minha em companhia dos livros, com a certeza de infindáveis descobertas. "Treze e outros contos", de Sérgio Sales, é mais uma delas. Obra com contos bem humorados ou reflexivos. Conheça aí um deles, em mais uma sugestão de livros para serem conferidos e apreciados. E de agradável leitura.

Título: Treze e outros contos
Autor: Sérgio Sales
Editora: Gráfica Virgem de Nazaré 
Páginas: 81 
Ano: 2007 
Tema: Contos

Sem saída

Eu morava num lugar bastante movimentado no centro comercial da cidade. Era um local amplo e bem iluminado, com enormes janelas, por onde entrava ventilação.
Apesar do barulho intenso, característico do lugar, eu gostava de morar ali. O som das buzinas dos carros que passavam, e dos alto-falantes, não me incomodava. Até mesmo alguns disparos feitos por policiais, em perseguição aos inúmeros bandidos, sempre presentes por ali, não chegavam a me importunar.
Eu tinha uma aprazível vista do mar, bem ali, em frente de onde eu morava.
Sombrinhas coloridas, garotas bonitas, carros esporte e gente por todos os lados, indo e vindo da praia, faziam minha alegria nos ensolarados finais de semana.
Nos outros dias, eu me contentava em olhar o mar e as garotas que trabalhavam no comércio. Também admirava os rapazes, e as crianças que transitavam pelo local.
Gostava também de observar os idosos, com sua calma peculiar, e os animais. Esses últimos me chamavam a atenção, por sua incrível racionalidade.
Morei por algum tempo nesse lugar mas, num certo dia, fui obrigado a mudar de endereço. Aliás, eu já contava com a mudança a qualquer momento, e não fiquei aborrecido. Achei que seria bom conhecer outro lugar, outras pessoas, outros ares. E assim, fui alegremente morar no meu novo endereço.
O lugar onde fui morar, ao contrário do anterior, não era em frente à praia, e nem tinha a agitação do comércio, entretanto, o som de disparos de arma de fogo era mais frequente, principalmente durante a noite.
Uma pequena casa, mal iluminada, em um bairro distante do centro, era a minha nova morada, e eu agora vivia com uma família de classe média baixa. O marido achava-se desempregado e o comando do lar ficava por conta da mulher, que trabalhava como vendedora de cosméticos, ou coisa que o valha.
As brigas eram constantes entre o casal por causa das bebedeiras do marido que, deprimido pela falta de trabalho, entregava-se ao álcool em excesso, quase todos os dias.
Em diversas ocasiões, eu o vi agredir a mulher, com socos e pontapés, tentando conseguir pela força, algum dinheiro para a compra da bebida.
O casal tinha uma filha de dez anos que nessas ocasiões corria a pedir socorro aos vizinhos, pois se ficasse em casa, seria também espancada pelo pai furioso e bêbado.
Eu não interferia nos problemas da família, apesar de não concordar com o comportamento desumano do marido, naqueles momentos. 
Compadecia-me da mulher e da garotinha, que sofriam muito, nas mãos daquele brutamontes.
Eu não gostava de morar com eles. sentia falta da praia e das pessoas alegres e felizes com as quais eu convivia no tempo em que residia no centro comercial.
Lembro-me de quando fui morar com eles. Receberam-me com sorrisos, muita festa, e fizeram até brindes pela minha chegada.
Disseram que eu seria de grande utilidade para a família, e a pequena falou que eu era forte e bonitão.
Fiquei tão lisonjeado com tudo isso, que nem me importei de saber, que ocuparia um pequeno cantinho na cozinha.
Mas o tempo foi passando e, apesar de saberem que eu era muito importante para a família, ninguém mais ligava para a minha presença naquela casa.
Isso me entristecia um pouco. Aliás, me entristecia bastante.
Num certo dia, durante uma de suas bebedeiras, o marido quebrou a casa toda, espancou a mulher como de costume, e agrediu-me também, me jogando no chão com violência.
Eu já não era novo e forte, e na queda, quebrei uma das pernas. senti vontade de ir embora dali... mas não fui.
Hoje ainda moro com a mesma família. Estou velho e aleijado, mas ainda sou de alguma utilidade.
Trago na minha lembrança os tempos em que eu morava em frente à praia, no centro comercial, lembro-me das sombrinhas coloridas, do cheiro do mar, das garotas do comércio, do vai e vem das pessoas. Ah! Como eu gostaria de poder voltar a morar lá.
Mas, infelizmente, não posso mudar de endereço por minha livre vontade.
Afinal... sou apenas, um simples armário de cozinha.


(Conto de Sérgio Sales,  publicado em Treze e outros contos - 2007)

Sérgio Sales, paraense nascido em Belém (1955), é músico, cantor, compositor, andarilho das estradas do Brasil, amante dos rios e das florestas, cantador de trovas e cordéis e estreante como contista com o livro Treze e outros contos (de 2007, sendo relançado em 2010). 
Participou em 2010 da coletânea Contos de Outono (lançada pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores, com o conto Enfim conseguiremos) e em 2013 publicou seu primeiro romance Amor, meu grande amor.



Mais informações sobre o autor em:
navegandonavanguarda.blogspot.com.br
- novopapeldeseda.blogspot.com.br