As postagens desse blog são em caráter informal, de apego ao saber popular, com seu entusiasmo, exageros, ingenuidade, acertos e erros.
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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Memórias de um Boto (Alcyr Meira)

MEMÓRIAS DE UM BOTO recorre às peripécias - especialmente amorosas - do mítico sedutor dos rios da região para traçar um painel criticamente bem-humorado da sociedade de Belém e do interior paraense nos anos 1950-1960.
Ilustrado pelo próprio autor, o texto passeia pelo Marajó e revive um Mosqueiro que não existe mais, lembrando de lugares como o Praia Bar e de personagens da ilha como a tacacazeira Raimunda, Zacarias Mártires e Manoel Tavares, o Russo, proprietários dos hotéis do Farol e do Chapéu Virado.
Castigado com a condição humana, José Marajó ou Zé da Ilha (os nomes adotados pelo boto) também conduz o leitor para marcos de Belém, como o Palácios dos Bares, ou Bar da Condor, onde João de Barros recebe a fina flor da boêmia da cidade. Quem conheceu a Belém daqueles tempos identificará muitos personagens, deste e de outros cenários. A um deles, o colunista Edwaldo Martins, grande amigo do autor, cabe noticiar o miraculoso desfecho do anti-herói Zé da Ilha. Um anti-herói que, agora finalmente editado, parte para novas travessias literárias. CARLOS MANESCHY (Magnífico Reitor da UFPA)

Título: Memórias de um Boto: um romance amazônico
Autor: Alcyr Meira
Editora: Cultural Brasil
Ano: 2013
Páginas: 512

O imaginário amazônico é rico em histórias fantásticas, muito presentes onde a floresta, o rio, a fauna e o isolamento de comunidades colocam o homem diariamente em um contexto de encontros, descobertas, mistérios e interpretações.
As narrativas sobre o boto estão entre as de maior identidade regional, principalmente entre ribeirinhos, aparecendo em transmissões orais ou, quando em registros literários, geralmente em contos e poesias. Me divirto com tudo isso e aí que entra o entusiasmo inicial com essa obra, pois em prosa romântica ainda não tinha lido nada sobre o boto.
As histórias que conhecia são curtas e parecidas, sem grandes aprofundamentos na trama, e agora me deparo com este romance com mais de 500 páginas, onde o tema em questão é abordado com riqueza de detalhes, passeando por percepções diversas entre o imaginário pueril, humor e dramas em lutas de realização e sobrevivência.
Contextualizando, foi escrito por Alcyr Meira (membro da Academia Paraense de Letras), a descrição é linear (desde o nascimento do boto) com ambientação em Belém e arquipélago do Marajó, entre as décadas de 1950 e 1960. Uma particularidade em especial é que o autor enriqueceu a obra com fatos e personagens reais desse fragmento temporário, seja em referências a pessoas ou locais reconhecíveis na cultura popular. Destaque também para as belas ilustrações idealizadas por Alcyr.
Em linhas gerais, acompanhamos a vida de José Marajó, também conhecido como Zé da Ilha, que é o boto, nascido para os lados de Soure. A primeira parte mostra sua infância e adolescência como tucuxi e a descrição é um tanto pueril. Lembra aqueles romances de aventuras protagonizados por animais, com coisas surrealmente atrativas e curiosas. Destaque para a lenda da origem do boto, na percepção do autor.
A partir da metamorfose humana, que o autor abordou em uma mitologia relacionada a Iara, o boto tem as primeiras aventuras em um povoado fictício no Marajó, chamado de Curuparu. Vemos as primeiras conquistas, paixonites, boemia e confusões. Gostei do cenário, de uma Amazônia folclórica como o romantismo a idealiza.
Soure dá continuidade como cenário e o desenrolar é em um drama familiar que envolve ambição e hipocrisia. O boto entra em cena como um malandro conquistador e registre-se que a obra desse ponto em diante procura enfatizar mais essa característica que a mitologia inicial.
Chegada de Zé da Ilha em Curuparu 
(Ilustração de Alcyr Meira - a obra tem cerca de 50 delas)
Nova confusão e vem a passagem por Mosqueiro, em envolvimentos com descrições centradas na sexualidade. O boto tem digressões em aprendizagens de suas experiências.
A narrativa em Icoaraci é a mais tensa, centrada em uma dupla vingança com desdobramentos futuros, pela morte dos pais do boto e pelo abalo em uma família devido a traições.
Finalmente chegamos a Belém e o desenrolar tem surpresas surreais, como a "humanização definitiva", relacionada ao maior símbolo folclórico da fé paraense. As surpresas tem um lado dramático, que misturam a história de Zé da Ilha com os eventos desencadeados pelo militarismo em 1964. Somam-se a esses dramas também, reencontros com personagens do passado.
Enfim, uma obra ideal para quem curte folclore da Amazônia, explorando o mito do boto de maneira curiosa, deixando também em paralelo um pouco da identidade paraense e amazônica. 

Em Macapá, pode ser lida na Biblioteca Ambiental da SEMA.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

2012 DA14 e o SKYLAB: Uma pequena história em Serra do Navio

Ilustração: blog.cienctec.com.br
No dia 15/02 um inusitado acontecimento ocorrerá nas proximidades da Terra. É que um pequeno asteroide passará perto de nossa órbita - felizmente e pelos estudos da NASA, sem grande risco de colisão.  O viajante cósmico tem nome, 2012 DA14,  foi descoberto ano passado por um grupo de astrônomos amadores da Espanha e desde então vem sendo monitorado pelas agências espaciais. Seu tamanho foi calculado em 46 metros de diâmetro e sua velocidade média é de 13 quilômetros por segundo - o suficiente para, em um hipotético impacto, causar uma destruição equivalente a 2,4 milhões de toneladas de dinamite. A proximidade com que passará é considerada de raspão, pois será menor que a distância da terra para a lua.
Quanta informação! Ah se não fora por isso... Na era da globalização, as notícias percorrem o mundo em pouco tempo e as especulações já não se formam às cegas. 

SKYLAB (Foto: astronomiaamadora.net)
Toda essa situação me fez lembrar de outro acontecimento quando morava em Serra do Navio, no final dos anos setenta. A cidade era considerada a mais organizada no Amapá e me arrisco a dizer de toda a Amazônia, pois tudo ali primava pela qualidade. O que não era privilégio era o acesso às informações como temos hoje, em que qualquer pessoa com um celular conectado pode viajar pelos quatro cantos do mundo. Naquele tempo quem chegava do trem era portador de notícias ou de cartas de parentes e amigos. As informações podiam também ser vistas na banca de revistas do Seu Donaldo, localizada atrás do Manganês Clube, e ainda pelo rádio ou pela televisão, mas com uma peculiaridade própria. Televisão, só no Clube... A exibição começava no final da tarde e a garotada aguardava com expectativa para assistir o famoso Sítio do Pica-Pau-Amarelo. Eu não perdia por nada e aos domingos depois da missa gostava também de assistir Os Trapalhões e o Fantástico, que era o principal programa da televisão brasileira, pois ninguém gostava de perder. Foi nessa rotina que em um domingo vi a notícia sobre a queda de um satélite. Há mais de 30 anos o Fantástico noticiou sobre um tal SKYLAB.
  
Mapa: Google Earth
Meus amigos, as notícias pareciam sempre com um tom trágico e sensacionalista, com mais conjecturas que informações precisas e os telejornais só acirravam isso. Nunca tinha ouvido falar sobre este satélite e o que ficou evidente para todos é que poderia cair repentinamente em qualquer lugar, quem sabe perto de casa ou sobre nossas cabeças. A boataria correu solta na Serra falando-se disso em todo lugar. Na escola, entre os vizinhos e nas rodas de conversa, seja no Manganês ou na lanchonete da Dona Didi, era fato certo a queda e nossa cidade estava na mira do fulano. 
Morava na BC-8 e ainda lembro de alguns vizinhos. Tinha o Carlos, o Lolito (o mesmo que é uma sumidade hoje na música amapaense com seu bandolim), o Ceará Cachorro, o Flecha, o Pedro (que era também pipoqueiro na cidade), o Floriano e o Farripa (nao esqueço da mobilete em que sempre o via passar e, principalmente, de suas belas filhas: amores platônicos). Outros vizinhos eram uns estagiários que sempre se instalavam na casa em frente à minha, o maquinista do trem (não recordo o nome), o Careca, o Fubica e o Jaburu, que moravam nos fundos de casa, na BC-9. O último citado, anos depois se tornou prefeito em Pedra Branca. Ah... meu pai era conhecido pelo simpático apelido de Cara-de-macaco. Eram meus vizinhos, só não tenho certeza se todos estavam na ocasião. Mas a maioria sim.
Se já não bastasse o medo do SKYLAB, terror nos meus pensamentos, em uma bela noite na rua de casa presenciamos um estranho acontecimento.

Eu e meu irmão nos tempos
de meninos na Serra do Navio (1979)
As famílias costumavam se recolher cedo e às nove ou dez horas as ruas estavam desertas, só ficava o pessoal lá do clube em suas competições de sinuca e baralho para voltar a seus lares ou alojamentos. Antes de se recolher a garotada costumava transformar as ruas em reino de brincadeiras. Ficávamos sentados na calçada jogando conversa fora ou inventávamos variadas brincadeiras, com a participação indistinta de meninos e meninas. Era bola, queimada, boca do forno, bole-bole, pula corda, pira-pega, pira-esconde, pira-alta, pira-ajuda, pira-árvore, macaca e sei lá mais o quê. Só não costumava ter nos dias em que havia o clube da leitura, quando a gente ia para a escola emprestar uns livrinhos. Numa destas, por volta das dezenove horas, vimos algo extraordinário. Detrás da montanha surgiram dois grandes círculos no céu. Vieram se movimentando calmamente com uma luminescência amarela, branca e até de um pálido verde, um dentro do outro, e todo mundo saiu de suas casas para ver. Ficamos admirando quando então veio a lembrança do SKYLAB. Um de meus vizinhos, a quem preservo o nome, se ajoelhou e com as mãos estendidas começou a clamar e dizer que o mundo ia acabar. Por um momento deu uma preocupação geral, pois os círculos pareceram crescer. Valha-me Deus! Seria o satélite vindo a nosso encontro? Nosso vizinho foi acalmado pela esposa e o medo foi se dissipando vendo-se a lentidão com que as rodas se moviam, afinal, se fosse algo caindo não ia ser naquela marcha lenta, sei como é isso, nessa época já conhecia a história do mundo dos dinossauros e seu fim. Ninguém se retirou até que sumissem e os círculos se movimentaram na direção de um viveiro de plantas localizado atrás da escola. Com certeza não tinha um corajoso ali para investigar o local naquela hora.

Ilustração baseada nas lembranças daquela noite em Serra do Navio.

No outro dia a conversa rolou solta e ninguém sabia o que foi aquela aparição. Só muito tempos depois que vislumbrei a possibilidade de se relacionarem às explosões que ocorriam na mina, que eram impressionantes e ressoavam em toda a vila. Mesmo assim, não sei ainda de que maneira se formaram aquelas luzes.
Essa foi uma noite inesquecível, onde presenciei por um momento: uma funesta chegada do apocalipse com a queda do SKYLAB, depois um fenômeno inexplicável no universo em que vivia, com aquelas enigmáticas luzes, e, como muitos preferiram acreditar (e é assim até hoje), a passagem de um disco voador sobre Serra do Navio.
Em 11/07/1979 o SKYLAB caiu mesmo, mas no mar, pondo fim aos pesadelos de muita gente. Foi o fim da antiga base espacial americana.
Dia 15/02/2013 um asteróide vai passar do nosso lado. Nada assustador hoje, quando se tem informações mais concretas e facilitadas sobre sua representatividade. Já naquela minha vila, quase 34 anos atrás...

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Um Boto Pós-Moderno (Leacide Moura)


Conhecendo um pouco mais da Literatura Amapaense. Este conto faz parte do livro "Encantos, Encontros, Poemas e Contos", de Leacide Moura & Iramel Lima, e tem como proposta a valorização de elementos folclóricos e geografia local. A obra é de 2008 e assim foi definida pelo escritor Paulo Tarso: "apresenta caráter dramático, humorístico e psicológico priorizando os espaços regionais e viagens no contexto brasileiro" (veja mais em escritoresap.blogspot.com).

 
Rio Amazonas (Fotos:cienciahojeCal Tedde) O maior rio do mundo em extensão, volume d'água e com a maior bacia hidrográfica do planeta.

Em uma aventura pela Amazônia o boto do Rio de Janeiro, acostumado a salinidade das águas do mar, prova do sabor da água doce do Rio Amazonas. A novidade era tão grande que ele se encantou com tudo o que encontrou.
O texto estava em exposição junto com a imagem de um boto, durante a Feira de Livros
Adorou o caudaloso Rio Amazonas... e numa manhã nublada sujeita à chuvas ele percorreu o Rio Amazonas rumo ao braço do Curiaú e enfrentou o maior toró sem se importar com o frio, para logo em seguida enfrentar um calorão com a imediata aparição do sol, mas ele nem se incomodou e tomou o maior respeito pelo clima da Amazônia.
Apreciava tudo, encantado, silencioso, como que querendo preservar e guardar pra si toda beleza paradisíaca do lugar.

 
APA do Curiaú (Fotos: Acervo da SEMA-AP)
Unidade de conservação a poucos kilômetros do centro de Macapá.

Ao chegar à margem do Rio Curiaú resolveu se transformar em homem para conhecer as pessoas daquela vila, especialmente as moças bonitas, e como dizia Caetano: "menino do Rio de eterno flerte", o boto não fugia a regra. Transformou-se em um moço alto, de cabelos longos amarrado a um "rabo de cavalo", tinha o rosto comprido, olhar penetrante e inteligente. Tinha um ar misterioso e ao mesmo tempo de uma ternura tão grande grande que jamais o deixava passar desapercebido pelas pessoas que se encantavam por ele no primeiro momento em que o viam.
Tela de Dekko do Acervo Fernando Canto
Tela de Pantaleão em exposição no CCFA
Obra de Regi em exposição no Monumento Marco Zero do Equador
Marabaixo, dança afrodescendente (capa do livro de Piedade Videira)
É a principal manifestação cultural do Estado do Amapá.

No Curiaú ao apreciar o extenso pantanal ele avistou uma abelhinha negra e disse a ela:
- Se você fosse uma moça eu te daria um beijo!
A abelhinha, toda agitada, pois tinha pressa, ia organizar o batuque para a dança do Marabaixo, olhou para o moço e disse:
- Desculpe, mas estou com pressa, preciso levar o mel pra casa e passar na casa do samba para a dança do Marabaixo e meu namorado é muito ciumento...
Então o boto resolveu conhecer outros lugares. Mergulhou novamente nas águas doce do Rio Amazonas e chegou até o Rio Jarí. Transformou-se novamente no moço atraente e adentrou a vila de casas do lugar. Parou em uma pensão para se alimentar após a viagem, precisava armazenar energia, pois pretendia conhecer outros lugares em sua aventura pela Amazônia.
Rio Jari (Foto: br.viarural.com)
Localiza-se no sul do Amapá, fazendo a divisa com o Estado do Pará. 
Nele encontramos uma das maiores belezas naturais da Amazônia...
Na pensão ele viu muitas moças bonitas e todas se encantaram por ele. Foi assim que ele viu outra abelhinha, uma abelhinha marrom que pousara em uma antena parabólica, ela era graciosa e alegre. O boto transformado em moço, não se conteve e disse a abelhinha.
- Abelinha, abelinha, se você fosse uma moça eu te daria um beijo!
- Passe lá na pensão à noite que eu quero te mostrar a minha família! O que a moça queria era casar.
O moço ficou desapontado e resolveu conhecer outros rios. Transformou-se novamente em boto, caiu no Rio Jari, pegou o braço do Rio Cajari, percorreu as corredeiras, chegou ao Rio Iratapuru. Ficou extasiado com a beleza exuberante do lugar, da floresta, do canto dos pássaros, dos gritos dos animais escondidos na mata...
Tomou novamente a forma humana e subiu a margem, queria conhecer os habitantes daquele lindo lugar. Imaginou que seriam seres notáveis, dada a beleza estonteante do pequeno vilarejo.
Lá ele conheceu os castanheiros, gente boa que o acolheu de braços abertos como se fosse filho do lugar que retornava à casa do pai.
Conversou muito com um caboclo de fala mansa, um verdadeiro sábio da floresta, o moço tudo ouvia sem perder uma só palavra da boca do ancião. Com ele o boto aprendeu o verdadeiro prazer da amizade, a respeitar e amar de peito aberto a floresta e a humanidade, a reconhecer o canto de cada passarinho... Já era quase noite, ele precisasva e ir embora... retornar ao Rio de Janeiro... já começava a sentir saudades de casa, do mar, do sol e das moças de corpo dourado... da música e da poesia... porém, tinha se afeiçoado ao Rio Iratapuru e àquele doce ancião.
Pediu licença ao sábio para dar uma caminhada pela floresta, queria memorizar cada palmo do lugar, açor da terra, o gosto das frutas silvestres, o som da floresta, o doce da água do rio...
Adentrou a mata, foi até a margem do rio quando avistou uma abelhinha que passava voando, ia buscar a água para complemento do vinho que estava a fazer.
Era uma abelhinha amarela de gestos serenos e meigos.
O boto, transformado em moço, não resistiu a tanta doçura e falou apaixonado:
- Se você fosse uma moça  eu te daria um beijo!
...A Cachoeira de Santo Antonio (Foto: SETUR-AP)
A abelhinha o fitou atônita, como que hipnotizada pela força de atração do moço nunca vista por ela. Ficou desconfiada, porém, estava tão atraída por ele e foi se transformando em moça, uma moça muito bonita. O moço a conduziu delicadamente para debaixo de uma imensa castanheira que ao se olhar debaixo para cima se perdia de vista de tamanha altura.
 A abelhinha nunca d'antes transformada em moça, estava zonza... O moço fitou-a nos olhos e a beijou suavemente.
Jandaíra fugiu assustada, mas o moço a alcançou e disse:
- Eu deixo você ir, mas terá que prometer que se casará comigo!
A abelhinha prometeu e foi-se embora. No caminho ela lembrou das lindas histórias de amor que lera em livros trazidos por turistas. Lembrou da história do piloto e seu amigo, o pequeno príncipe, que se apaixonara pela rosa, tinha algo parecido com sua história. O ancião sábio da floresta, o boto e ela Jandaíra. Sentiu medo. Queria ser amada. Estava apaixonada. Tinha medo de perde-lo.
Se encontraram à noite na casa do ancião. Na madrugada eles apreciaram a lua mais linda por trás das árvores altas e majestosas, cujo reflexo nas águas do Rio Iratapuru emanava a magia das paisagens. Estavam ali. O boto-moço e a abelhinha-moça, o rio, a floresta e alua...
No dia seguinte após passar a noite mais linda de suas vidas, o boto e a abelhinha despediram-se do ancião e partiram em sua aventura pelo Rio Amazonas
Situação no final de 2012. As águas foram desviadas por conta 
da construção de uma barragem. 
Dizem que o fluxo retornará em 2013 (VEJA AQUI).
Chegaram à Cachoeira de Santo Antonio, os dois ficaram extasiados diante de tanta de tanta beleza. As rochas adornadas de samambaias, o volume d´´agua, o turbilhar da cachoeira e o respingar d'água como vapor...
Ali, os dois fizeram um pacto de amor. Silencioso. As palavras não tinham valor. Somente os sentimentos contavam!
Jandaíra fabricou o seu melhor mel e o ofertou  a seu amado. Esse ficou maravilhado, pois nunca havia provado de tal manjar.
Capa do livro
Os dois continuaram se amando até que um dia o moço amanheceu tristonho. Jandaíra sentiu o coração paralisar, ela sabia que o moço sentia saudades de casa. Mas ela o amava demais para vê-lo sofrer! Lembrou-se novamente do pequeno príncipe e sua rosa... Ela já não era mais a mesma, havia amadurecido.Estava pronta para avida e com uma doçura calma disse ao moço:
- Não demores assim, que é exasperante. Tu decidistes partir. Vai-te embora!
O boto fitou-a parado sem compreender.
É claro que eu te amo, disse-lhe a abelhinha. Abraçou-o e murmurou aos seu ouvido:
- Eu te amo! Com os olhos marejados de lágrimas, saiu correndo pois, era muito orgulhosa e não queria que a visse chorar.
O boto mergulhou na água doce do Rio Amazonas e partiu para o Rio de Janeiro. E de lá sempre lembra do "mel de Jandaíra".


(Texto de Leacide Moura, em "Encantos, Encontros, Poemas e Contos" - Macapá-AP, JM Editora Gráfica, 2008)

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terça-feira, 6 de novembro de 2012

Histórias da Vó Nikita: Meuã de uma guariba (Parte 1)

Guariba Vermelha
(Foto: estradasecaminhos.blogspot.com)
Nas altas copas desfila sua maestria de acrobata, não temendo alturas e se movimentando confiante nas sumaúmas, angelins ou ipês. Canta também como artista da mata, um aviso de quem tem o senhorio por ali, em apresentações conhecidas no final das tardes. Chamam-na de Arawata, Akyky, Arãta ou Alawata; às vezes é Singe rouge, Brulaap, Guianan red howler monkey, Roter Brüllaffe ou Araguato; também é Bugio e eu a conheço por Guariba. Nome familiar no Norte que, na raíz tupi-guarani, refere-se a um indivíduo feio. Não me importa, é o nome entre todos que me soa mais bonito, enchendo a boca numa expressão de amazonidade
"Os uivos característicos são uma boa forma para a espécie preservar energia, indicando sua presença e evitando conflitos com outros grupos. São impressionantes e resultam de uma modificação do osso hióide na garganta. O animal é de natureza pacífica." (Fonte: une-saison-en-guyane.com)

Vive em bando de uns 10 indivíduos chefiados pelo mais forte, a quem aprendi chamar de capelão, buscando pelos frutos, pelas sementes, flores, ovos e até cupinzeiros. Tem da espécie vermelha e da espécie preta, sendo a mais comum a primeira, também chamada de ruiva ou loira. O bicho tem fama de ladino e esperto, quem sabe não foi daí que surgiu a expressão guaribada, sugerindo uma enganação com algo rapidamente feito. Não sei de nada, são conjecturas... 
Guariba Preta
(Foto: ninha.bio.br)
Vamos ver o que a sabedoria popular nos ensina também. 
O caboclo da Amazônia é observador e vai guardando tudo o que espia e escuta dessas matas e rios, seja fruto de verdades, equívocos ou de deslavadas mentiras. Não é de hoje a fama de matreira da guariba. É um bicho ajuizado e esperto, acompanhe: aprecia os bons frutos, como o taperebá, tendo sempre o cuidado de enfiar no fiofó o caroço, antes de engoli-lo inteiro. Se passar, engole. Por isso jamais padece de entupimentos, como é comum em muitos meninos com a goiaba. E não para por aí não!! Como tem o fiofó daqueles que é porrudo, quando vai nadar em travessia a algum igarapé, tem aquele caprichoso cuidado de vedar tudo com folhagem e assim sai nadando despreocupada, com o rabo te-tei de folhas... mas protegido. É lendária sua sabedoria, mas eu deixo para experimentares isso, se quiseres... depois me conta tudo se de fato foi de boa medida. 
Há quem entre nestas matas com o propósito de dar cabo dos bichos, se ainda fosse para se alimentar  por precisão... Vão atrás movidos por seus instintos de ogro e até para atender o bel-prazer de outros que nem moram nos interiores. Já ouvi falar de festas regadas à maldita cachaçada onde os pratos principais são as caças. 
Vó Ana, em 05/11/2012
Pior que isso só as atitudes imbecis dos homens que pagam para entrar em muitos cantos do mundo para ter o prazer de dar um tiro bem na cara de um animal indefeso e em seu habitat natural, como as onças na Amazônia ou outros muitos na África
A guariba é também destes bichos visados e, reza a lenda, pode descer da árvore, se livre de um tiro mortal, virando meuã, com dentes, unhadas e pau ou pedras na mão. Quando atingida de raspão, passa folhas sobre o ferimento e esconde-se sem quem a encontre. É o que brota no imaginário...
Essas coisas são conhecidas na Amazônia. Vou lhes contar mais uma delas, ocorrida nas matas do Amapá. Vou lhes contar mais uma História da Vó Nikita... 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

A Lenda do Açaí

Ilustração: Felix
Em tempos antigos, onde hoje se localiza Belém do Pará, havia uma tribo que, devido à escassez de alimentos, vivia sempre em grandes dificuldades, principalmente pelo aumento do número de pessoas. Um dia o cacique reuniu sua gente e tomou a decisão de fazer o controle da população... não havia alimento para todos (sei não... a estória se passa na Amazônia e  esse líder tá me parecendo mais um daqueles "Deus me acuda que nada faço"). Ficou resolvido, pelo cacique e seus ajudadores, que toda criança que nascesse a partir daquele dia deveria ser sacrificada, até que voltassem tempos de fartura (ih, rapaz... que coisa mais cruel... pior que em muitas culturas o infanticídio era praticado por diferentes razões. Não é brincadeira! Por exemplo, governantes egípcios tentaram controlar os israelitas atirando as crianças recém-nascidas no rio Nilo... Conheces esta história? Veja lá no livro de Êxodo, na Bíblia). Voltando para a lenda... Mas que ironia! Gira o mundo e o cacique experimentou um dia as consequências do tal controle da população em sua própria família. É que sua filha IAÇÁ ficou grávida e teve uma linda criança. O cacique então, não querendo desmerecer sua palavra frente a tribo e, mesmo diante das súplicas e choro da filha para que poupasse sua criança, manteve a decisão que havia estabelecido (Égua cacique! Pra governar tu deverias entender mais de planejamento, racionamento, sustentabilidade e mais ainda de satisfação pública... Só os tiranos tomam decisões cruéis contra o povo, baseados em suas idéias mirabolantes e imperativas, que acabam gerando insatisfação e revoltas... está aí exemplificando a Primavera Árabe). Enfim, a criança foi sacrificada em nome de ideais caducos e IAÇÁ chorava todas as noites com saudades de sua filha. Até que numa noite de lua cheia (Ah! a lua cheia... Sempre presente e arauto de magia)  a índia ouviu o choro de uma criança. Vinha da direção do rio e então, coisas do saudosismo de mãe, viu sua filha sorridente ao pé de uma esbelta palmeira. Viu? Sim... Ali estava sua filhinha a acenar-lhe, estendendo os tenros braços. IAÇÁ lançou-se em direção à filha, envolvendo-a com o calor e acalento desejados por sofridas noites seguidas. Rompante de ilusão... Deparou-se abraçada à palmeira. Inconsolável, chorou copiosamente até desfalecer... Diz a lenda meus amigos, que no dia seguinte encontraram seu corpo no local. A índia, já abatida pela tristeza, sucumbiu abraçada a palmeira. Seus olhos fitavam o alto da árvore, que se encontrava carregada de pequenos frutos escuros (Vislumbrava uma possibilidade nova de alimento a seu povo? O fruto desta, tão representativo na Amazônia, ainda era desconhecido pelos indígenas).  
Ô açaizal bonito, na Amazônia!
Comovido com tudo aquilo, o cacique ficou curioso e ordenou que os indígenas apanhassem os frutinhos. Percebeu que deles poderia se extrair um delicioso suco quando amassados, que passou a ser a principal fonte de alimento daquela aldeia. Este achado fez com que o cacique suspendesse os sacrifícios e as crianças voltaram a nascer livremente, pois a alimentação já não era mais problema na aldeia (Bom minha filha!! Vitaminados pelo novo alimento,  essa  lei tola não teria mesmo como existir... Haja sustância... O quê!!!? Vem cá minha nega...).
Para agradecer aquela benção recebida e também para homenagear sua filha (...e o perdão pelas atrocidades?)  o cacique batizou aquelas frutinhas com o nome de “AÇAÍ” que é justamente o nome de “IAÇÁ” ao contrário. 

O texto é baseado em:
- acidezmental.xpg.com.br
- Revista Amazon View (Edição 26)

Veja as peculiariedades do açai nas publicações:
- Manejo de açaizais nativos (Folder IEF/AP) - Aqui

Lenda do Açaí - vídeo de programa infantil da TV Cultura:

Sabor Açaí (Nilson Chaves)

Animação de Ezequieldg

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A Lenda do Manganês

Ilustração de Honorato Jr
Conta-se que há muitos anos atrás alguns negros conseguiram fugir da escravidão e chegaram na região de Serra do Navio, formando um quilombo. Época em que existia também o quilombo no Curiaú, ambos abrigando centenas de famílias,  que plantavam mandioca, arroz, feijão, cana-de-acúcar e viviam preservando sua cultura.
Soldados portugueses um dia invadiram suas terras, aprisionaram e escravizaram todos, forçando-os ao trabalho pesado, principalmente na garimpagem. Mas eles não aceitavam a dominação e sempre pensavam em sua liberdade para saírem da maldade e dominação dos portugueses. Esse povo sofrido, valendo-se de suas tradições e força de vontade, um dia pediu proteção à Taimã para se libertarem e resolveram lutar  contra seus exploradores. Foi uma batalha ferrenha e os negros - em quantidade muito inferior, sem armas e enfraquecidos pelos trabalhos forçados - acabaram derrotados e dizimados. Muito sangue foi derramado na Terra. Diz a lenda que Taimã transformou o sangue negro na pedra preta que foi encontrada no local da luta, parecendo sangue congelado. Surgiu assim a origem do manganês, uma das maiores riquezas do Amapá.

(Baseado nos textos de Paulo Dias Morais e Joseli Dias)

Esta lenda está descrita nas seguintes publicações amapaenses sobre folclore:


1) Amapá: Lendas Regionais (Paulo Dias Morais) - A estória está em uma versão mais simplifidada, foi a que serviu de base para o texto da lenda nesta postagem. 

2) Mitos & Lendas do Amapá (Joseli Dias) - É a mesma estória, mas o texto está mais detalhado, citando o negro Itauna.

São livros sobre o folclore amapaense que podem ser encontrados, em Macapá, nas bancas de revistas e livrarias. Podem ser consultados também nas Bibliotecas de Macapá (como a Biblioteca Pública Elcy Lacerda).

Para não ficar só com lendas: 
O manganês é um metal de transição de coloração branco cinzento parecido com o ferro. Está entre os metais mais abundantes na crosta terrestre e sua principal utilização é na fabricação de ligas metálicas.
Foto e Informação:   



Serra do Navio, durante décadas, foi o principal fornecedor de manganês no Brasil. Na imagem se vê o afloramento do metal na região, em uma foto da biblioteca.ibge.gov.br. Visite este site e veja outras fotos interessantes, históricas, raras, antigas e importantes.
 Fotos: setur.ap.gov.br

Na Serra do Navio existem duas pedras gigantes de manganês que são tradicionais pontos para fotografias. A pedra em destaque é a da frente da igreja, foi tirada no sentido da igreja para o mercado. O vaso é uma ilustração do artesanato com manganês.

Já esta foto ao lado mostra a pedra localizada na praça, que está estrategicamente em um ponto de equilíbrio (Poxa vida! quantas vezes não tive a vontade, junto com outros colegas na infância, de querer derrubá-la... coisa para máquinas). Bem perto desta pedra ocorria também o asteamento da bandeira... às vezes, ficava por ali à tarde para acompanhar a forma estratégica, rotineira e cerimonial como retiravam, dobravam e guardavam a bandeira. A foto é bem antiga (da década de 60) e, apesar de danificada, resolvi postar para mostrar que imagens assim são uma tradição no mínimo quinquagenária (a propósito, o jovem com as mãos no bolso é meu pai, o famigerado Cara-de-macaco). Finalizando estas bobagens minhas sobre o manganês, nos tempos da ICOMI ocorria, com muita fama na região, a tradicional Festa da Mina (em dezembro), atraindo turistas de vários locais e com eventuais apresentações de artistas conhecidos no cenário musical brasileiro (são exemplos The Fevers, Pholhas, Chrystian & Ralf...), tudo devido o manganês (que também nomeava a sede Manganês Esporte Clube, point das baladas, jogos de sinuca, baralho, dominó e com o salão com as antológicas exibições de programas televisivos, nos tempos em que o sinal de emissoras não chegava ali). Quem for em Serra do Navio (ou visitar Macapá), procure conhecer o artesanato com manganês  e tirar uma tradicional foto em frente a uma pedra gigante do metal (localizada na praça e outra em frente à igreja, isto lá na Serra). 

Em Macapá também econtramos uma pedra de manganês, menor que as de Serra do Navio, localizada na Praça Veiga Cabral, próximo à Igreja de São José.

Exemplo de artesanato com manganês encontrado na Casa do Artesão, em Macapá.


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segunda-feira, 18 de junho de 2012

Tem boto na rede do Tunico (Vídeo)

A Amazônia e seus cenários,
sempre com muitas lendas conhecidas.
1) São Tomé do Macacoari (Itaubal do Piriri-AP )/ 2) Mangal das Garças (Belém-PA)
3) Rio Araguari (Ferreira Gomes-AP) / 4) Igarapé da Fortaleza (Macapá-AP) 
5) Cachoeira Grande (Calçoene-AP) / 6) Maracá (Mazagão-AP)  
7) Foz do Macacoari (Itaubal do Piriri-AP)
Fotos "batidas" por Gregor Samsa
Como admirador destas estórias, prestigio aqui este curta-metragem amador filmado em Ponta das Pedras (Marajó/Pará). Conta-nos a história de uma jovem chamada Raimunda (Mundica) que morou um tempo em Belém e, retornando à sua casa no interior paraense, mostra-se cheia de manias, vindo acompanhada de um namorado nada acostumado com a vida ribeirinha. Mesmo querendo ostentar uma imagem diferente de si mesma não mudam suas raízes, desta forma, diz ser encantada pelo boto em uma noite, uma referência lendária na Amazônia à supostas traições.  É uma história divertida mostrando personagens comuns: o caboclo, seus costumes e gaiatices, a rezadeira e a vida simples do ribeirinho. O vídeo tem mais de 33 mil acessos no youtube, é de produção simples e divertido,  valendo uma boa conferida. Essa é a Amazônia, alguns de seus moradores e um causo sobre uma de suas lendas.


Criação: Associação Cultural Dalcídio Jurandir
Elenco: Alice Felix (Mundica) / Jorge Castro (Armando) / Bruno Mendes (Tunico) / Iza Teixeira (Dona Joana) / Lulu do Trombonhe (Abelardo) / Letícia Morais (Anastácia) / Rayssa (Augusta) /  Pedro Jr (Antônio) / Marialba Ribeiro (Dona Dinha) / Adelino Sarges (Boto)
Direção: Pedro Harlei / David Oliveira / Erivelton Lalor
Edição: Anderson Tavares / Erivelton Lalor
Operador de Câmera: Erivelton Lalor / Anderson Tavares

terça-feira, 8 de maio de 2012

Histórias da Vó Nikita - O Poço Fundo (Um conto da Cobra Norato)

Em um grandioso rio, neste mundaréu que é a Amazônia, existia um recanto famoso por suas lendas e mistérios. Lugar de encantos, marcado por uma história conhecida e comprovada na mais ferrenha convicção por todos que ali transitavam... nas noites de lua cheia.
Trata-se do rio Jacaré Grande. Trata-se do imaginário popular, lá para as bandas de Breves. Trata-se de mais uma das histórias de Vó Nikita. 
Nikita (1986) Monte Dourado - PA
Ah, minha avó! Jamais posso eu esquecer de suas narrativas e do quanto me despertaram para a leitura. Histórias do pensamento  ribeirinho de outrora, meus antepassados, que ainda tem a força mística de produzir encantos. Acreditem! Através destas histórias neste blog, minha avó Ana reencontrou uma neta afastada e sem contatos há 20 anos. Faces que o destino nos mostra... pudessem ser sempre felizes. Bem-vinda Ana Caroline! Bem-vinda ao lar de sua avó Ana Castelo! A coluna mais antiga desta família, mulher perseguidora de sonhos e testemunha dos fatos que conta em suas Histórias da Nikita.

Era uma casa tão alegre! A festa corria solta da manhã até o raiar de um novo dia. Como sempre acontecia, os caboclos vinham de todas as paragens para a festança, capazes de remar horas seguidas em suas montarias para não perder a animação. Tempo de namoros - em uma destas formou-se o casal Nikita e Branco Velho, meus avós maternos - tempo de danças, fofocas, reaver os amigos e sair da rotina diária na vida ribeirinha. Esta era a festividade em um barracão, avançado na curva do rio e preparado para receber umas 100 pessoas. Festa que os ilustres anfitriões faziam sempre, já famosas, no surgimento de cada novo ano, chamando os parentes e amigos. Isso meus amigos era nos anos de 1930 em uma Amazônia encantada de histórias e superstições. Minha avó assim o disse. 
Em um destes dias, quando o pau torava e a caboclada dançava fervorosamente ao som do pistão, um ilustre visitante chega no local. Terno branco, chapéu de palha no melhor estilo, bem alinhado, com uma elegância e trejeitos que logo chamou a atenção das moças, sempre em buscas de bons partidos. Este com certeza era um... pensamento em cada mocinha solteira, admiradas do rapaz, que se revelou o melhor pé-de-valsa naquele local.
Nada de Uiara, nada de boto. O rapaz era conhecido por muitos naqueles cantos, apesar de conservar sempre um quê de mistério. Vez por outra sumia e reaparecia, contava histórias de andanças neste mundo e nada se conhecia de seus familiares. Seu surgimento causava uma ciumeira entre os caboclos, que não eram páreos aos seus galanteios com as moças, a esta altura animadas e desejosas de uma dança. Todas logo vinham engrossar as fileiras de admiradoras em uma saudação de suspiros unânimes: 
- Como vai Norato?
 
Cobra Norato (Ilustração do educacao.uol.com.br)
Solte a imaginação!! Deixo para você a interpretação da imagem!

O jovem, sempre cordial, era todo atenção às moças. Dançou com tantas quanto solicitado, tornando-se o protagonista maior no salão daquele famigerado barracão às margens do Jacaré Grande. Conversa vai e conversa vem, logo anoiteceu, mostrando o resplendor de uma belíssima lua cheia. 
Foi então que Norato mais uma vez deu pinta de seus ares misteriosos. Coisas de rapaz esquisito... no melhor da festa, quando os ponteiros do relógio caminhavam para a meia-noite, cismou de querer ir embora. Ora por que? Se lá fora há só o breu da noite e as horas vem anunciando um novo ano a despontar! O desejo de confraternização e amizade era mais forte do que nunca em cada coração, não só renovados na esperança, como também necessitados de exteriorizar, indistintamente, os melhores sentimentos em efusivos abraços. Principalmente entre as moças, eternamente sonhadoras, onde Norato era o alvo de seus desejos. Assim, não poderia - nem deixariam - de forma alguma sair do local, neste dia de lembranças únicas...  e impossivelmente críveis... como então se verá.


Brilha lua! Mostra tua beleza... cheia de graça, de luz e de encantos. Lua cheia é senhora da noite, farol nas matas distantes e inspiração aos corações... Não no de Norato. Triste e sozinho, vagando na noite encantada como a cobra maior do rio, revelada pelo pálido brilho de toda lua cheia. Vaga solitário, se escondendo de tudo e fugindo de todos, ocultando sua triste sina de encantado. Serpenteia nos rios e matas desabitadas o horror de um monstro lendário, descortinado e pujante em todo período da lua cheia, desde a meia-noite do primeiro dia.

Foto: Octavio Campos Salles
Fonte: cativagoogle.blogspot.com.br
Dizem que vive por aí, está no rio, está na mata. O caboclo ribeirinho o teme e qualquer banzeiro mais forte traz a lembrança de sua temida proximidade. 
Testemunhas oculares da cobra gigante quase não há, só as histórias  e a certeza de sua presença. Histórias como a do Poço Fundo, local desabitado há mais de 80 anos e com uma superstição viva no coração dos que transitam por ali. Nas noites de lua cheia, quem se aventura em passar perto, jura que ouve, com a atenção sedenta para as lendas, uma música de pistão soando na noite, seguida de murmúrios, canto do galo, latido, miado e um vozerio sem causa aparente... Parece uma festa!
 
  
Não podendo conter sua ânsia e impossibilidade de retirar-se, Norato vê a meia-noite aproximar-se como o pesadelo de seu destino. Falta pouco, seu corpo é tomado de uma febre repentina e suor crescente. Já não encara ninguém, sua face parece doentia, pálida e descamativa. Há um jeito de ocultar-se? Com as forças humanas que lhe restam pede a um dos anfitriões um local onde possa descansar um pouco, informa suspeitar de malária e é encaminhado para um dos quartos. Pede momento a sós, não quer ser procurado e nem assistido, alguns minutos de repouso são o bastante para recuperar suas forças.  Agradece e tranca a porta.  Em sua mente a oportunidade criada para sair do local pela janela, enquanto os festejos do ano novo distraem a atenção de todos. É hora de partir e deixar para trás as lembranças felizes. Serão seu alento e resto de humanidade quando na capa de cobra, por toda aquela sua angustiosa semana de lua cheia. 

Suposta foto de 1932, famosa entre os criptozoologistas. Mostra um Sucuriju Gigante, que foi morto na fronteira com a Venezuela pelos guardas de fronteira brasileiros. Serão verdadeiras as dimensões? Indiscutível, porém, os relatos de encontros com animais muito maiores que os atuais. Só um lembrete de onde nascem as lendas. Nem tudo é exercício da imaginação. 
Fonte da foto: northamericanmonsters.blogspot.com
Um novo ano é saudado com o entusiasmo de velhos comprades ribeirinhos. Por alguns minutos a atenção é toda centrada na confraternização no salão. Norato não está ali, fato inesquecível no coração de uma das jovens no local, cativa da paixão pelo rapaz. Foi ver as condições do mesmo, cuja informação circulante era que estava em repouso devido um mal-estar súbito. Bateu na porta - trancada - chamou e nada de respostas. A moça, com a preocupação dispensada a quem se gosta, olhou por uma fresta nas tábuas da parede. Horror!!! Seu coração acelerou ante a visão de um sucuriju gigante, com escamas negras e brilhantes na luz do lampião. Rolos grossos como nunca vira, espalhando-se por todo o quarto e querendo projetar-se pela janela. Desespero!!! Lembrou do jovem e foi tomada pela certeza de ter sido morto por aquele monstro. Isso tudo em segundos, culminando com o mais terrível grito que todos por ali ouviram. Espalhou-se o caos frente a informação de tal cobra no local. A casa rangeu com a algazarra e a cobra, sentindo as vibrações do desespero, rompeu a parede da casa mergulhando no rio com a força e peso de uma lenda. Atrás de si arrastou tudo ao fundo, nada restou, tudo foi tragado por um redemoinho gigante. Nem tábua, nem alicerce, nem gente, nem bicho... tudo sumiu como encanto no brilho daquela lua cheia. 
 

Restou esta narração, contada e conhecida por minha avó Ana (a Nikita), de um local encantado que sumiu com tudo que tinha, como um poço fundo, ecoando a música e murmúrios de uma festa sem fim na curva de um rio, o Jacaré Grande.  Lugar  de encantos e exercício da imaginação frente ao desconhecido, predisposto a acreditar em fatos como esse, onde reinam as lendas e, da boca dos mais vividos, aprende-se A LENDA DA COBRA NORATO.

Texto de Rogério Castelo baseado nas narrativas de sua avó Ana Castelo.
Olha aí, nada de gaiatice de que tô segurando a cobra!!! 
Pra mim essa é uma cobra-fêmea, é a Maria Caninana!!!
Nunca ouviram falar? De onde vocês acham que vinha o medo de Norato, 
apresentado como um sujeito de bom coração.
Ah!! Mas isso é uma outra estória!!!