As postagens desse blog são em caráter informal, de apego ao saber popular, com seu entusiasmo, exageros, ingenuidade, acertos e erros.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Memórias de um Boto (Alcyr Meira)

MEMÓRIAS DE UM BOTO recorre às peripécias - especialmente amorosas - do mítico sedutor dos rios da região para traçar um painel criticamente bem-humorado da sociedade de Belém e do interior paraense nos anos 1950-1960.
Ilustrado pelo próprio autor, o texto passeia pelo Marajó e revive um Mosqueiro que não existe mais, lembrando de lugares como o Praia Bar e de personagens da ilha como a tacacazeira Raimunda, Zacarias Mártires e Manoel Tavares, o Russo, proprietários dos hotéis do Farol e do Chapéu Virado.
Castigado com a condição humana, José Marajó ou Zé da Ilha (os nomes adotados pelo boto) também conduz o leitor para marcos de Belém, como o Palácios dos Bares, ou Bar da Condor, onde João de Barros recebe a fina flor da boêmia da cidade. Quem conheceu a Belém daqueles tempos identificará muitos personagens, deste e de outros cenários. A um deles, o colunista Edwaldo Martins, grande amigo do autor, cabe noticiar o miraculoso desfecho do anti-herói Zé da Ilha. Um anti-herói que, agora finalmente editado, parte para novas travessias literárias. CARLOS MANESCHY (Magnífico Reitor da UFPA)

Título: Memórias de um Boto: um romance amazônico
Autor: Alcyr Meira
Editora: Cultural Brasil
Ano: 2013
Páginas: 512

O imaginário amazônico é rico em histórias fantásticas, muito presentes onde a floresta, o rio, a fauna e o isolamento de comunidades colocam o homem diariamente em um contexto de encontros, descobertas, mistérios e interpretações.
As narrativas sobre o boto estão entre as de maior identidade regional, principalmente entre ribeirinhos, aparecendo em transmissões orais ou, quando em registros literários, geralmente em contos e poesias. Me divirto com tudo isso e aí que entra o entusiasmo inicial com essa obra, pois em prosa romântica ainda não tinha lido nada sobre o boto.
As histórias que conhecia são curtas e parecidas, sem grandes aprofundamentos na trama, e agora me deparo com este romance com mais de 500 páginas, onde o tema em questão é abordado com riqueza de detalhes, passeando por percepções diversas entre o imaginário pueril, humor e dramas em lutas de realização e sobrevivência.
Contextualizando, foi escrito por Alcyr Meira (membro da Academia Paraense de Letras), a descrição é linear (desde o nascimento do boto) com ambientação em Belém e arquipélago do Marajó, entre as décadas de 1950 e 1960. Uma particularidade em especial é que o autor enriqueceu a obra com fatos e personagens reais desse fragmento temporário, seja em referências a pessoas ou locais reconhecíveis na cultura popular. Destaque também para as belas ilustrações idealizadas por Alcyr.
Em linhas gerais, acompanhamos a vida de José Marajó, também conhecido como Zé da Ilha, que é o boto, nascido para os lados de Soure. A primeira parte mostra sua infância e adolescência como tucuxi e a descrição é um tanto pueril. Lembra aqueles romances de aventuras protagonizados por animais, com coisas surrealmente atrativas e curiosas. Destaque para a lenda da origem do boto, na percepção do autor.
A partir da metamorfose humana, que o autor abordou em uma mitologia relacionada a Iara, o boto tem as primeiras aventuras em um povoado fictício no Marajó, chamado de Curuparu. Vemos as primeiras conquistas, paixonites, boemia e confusões. Gostei do cenário, de uma Amazônia folclórica como o romantismo a idealiza.
Soure dá continuidade como cenário e o desenrolar é em um drama familiar que envolve ambição e hipocrisia. O boto entra em cena como um malandro conquistador e registre-se que a obra desse ponto em diante procura enfatizar mais essa característica que a mitologia inicial.
Chegada de Zé da Ilha em Curuparu 
(Ilustração de Alcyr Meira - a obra tem cerca de 50 delas)
Nova confusão e vem a passagem por Mosqueiro, em envolvimentos com descrições centradas na sexualidade. O boto tem digressões em aprendizagens de suas experiências.
A narrativa em Icoaraci é a mais tensa, centrada em uma dupla vingança com desdobramentos futuros, pela morte dos pais do boto e pelo abalo em uma família devido a traições.
Finalmente chegamos a Belém e o desenrolar tem surpresas surreais, como a "humanização definitiva", relacionada ao maior símbolo folclórico da fé paraense. As surpresas tem um lado dramático, que misturam a história de Zé da Ilha com os eventos desencadeados pelo militarismo em 1964. Somam-se a esses dramas também, reencontros com personagens do passado.
Enfim, uma obra ideal para quem curte folclore da Amazônia, explorando o mito do boto de maneira curiosa, deixando também em paralelo um pouco da identidade paraense e amazônica. 

Em Macapá, pode ser lida na Biblioteca Ambiental da SEMA.