As postagens desse blog são em caráter informal, de apego ao saber popular, com seu entusiasmo, exageros, ingenuidade, acertos e erros.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico (Laurent Vidal)

1769. Na fortaleza portuguesa de Mazagão, situada no noroeste da África, Marrocos, cercada pelos mouros, os moradores se irmanavam num movimento incomum. Para estes 1642 habitantes, a data ficará gravada com fogo na memória de cada um, apesar desta praça, desde 1509 sob a posse da Coroa portuguesa, já ter passado pelas mais dolorosas privações. Durante 260 anos, as sucessivas gerações de moradores, vivendo isolados do restante do continente, numa fortaleza debruçada sobre o mar, ao qual se ligavam por uma estreita porta, haviam sido fustigadas pelo isolamento, pela fome, pelas epidemias, pelos conflitos internos, mas também pelo tédio e pela inércia, todos subprodutos da sua reclusão. Mas nada se comparava ao que estava para acontecer. Apesar de todas as dificuldades, ao longo dessa longa jornada, haviam sempre resistido bravamente. 
Nesse livro, como Homero, inspirado pela musa da História, Laurent Vidal nos revela, de maneira brilhante e instigante, os destinos de Mazagão, uma cidade-odisseia que atravessa o Atlântico.
(Trecho do artigo de Júnia Ferreira Furtado, disponível NESTE LINK)



Informações da obra
Título: Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico
Autor: Laurent Vidal
Ano: 2008
Páginas: 294

Registro no SKOOB
A obra amplia o conhecimento sobre Mazagão e sua história em detalhes pouco conhecidos. Vemos o contexto vivenciado na cidade em Marrocos, fatores determinantes para a mudança e os passos que se somaram até a vinda de várias famílias para o Amapá. As informações foram pesquisadas nos três continentes envolvidos, evidenciando-se aspectos históricos, políticos, sociológicos, econômicos, geográficos e culturais do século XVII.
Leitura rica em percepções, descobrimentos e reflexões que podem servir de paralelo no estudo das cidades em fluxo migratório na atualidade, uma das propostas ressaltadas. O autor procura desmistificar muita coisa que se estabeleceu e, à luz dos fatos apresentados, instiga a criticidade em história com episódios impactantes.
Registrando algo mais específico, a Mazagão de Marrocos é apresentada em suas características físicas (onde se destacava a imponência das muralhas que chegavam a 14 metros de altura), a importância como entreposto para Portugal, a instabilidade política e a insatisfação que despertava entre os povos no Marrocos, além do cotidiano estabelecido.
Destaca-se o fato de, na prática, ser uma cidade prisão, onde Portugal enviava exilados e condenados em estratégia política com desfaçatez. Ocorreram episódios de fome e epidemias devido rupturas comerciais, quando Portugal fora atingido por terremoto e sofreu com pressões da Espanha e França, redirecionando o foco político para a colônia brasileira.
Uma das partes mais interessantes está na política de remanejamento, em que os governantes portugueses articularam algo que os exaltava como salvadores e também vencedores da tensão estabelecida na África. Porém, o povo se sentia abandonado e sofria graves consequências com os conflitos crescentes no interior e exterior da cidade.
As estratégias políticas escusas estão presentes também na articulação da vinda para a Amazônia, quando os mazaganenses foram encorajados pelos governantes como soldados da fé e teriam a dádiva de evangelização entre os povos nativos em um novo mundo. 
Algo que nunca tinha ouvido falar: Laurent Vidal relata arbitrariedades contras famílias na vinda para a colônia, que incluiu abusos e assassinatos.
Na chegada ao Brasil o livro tece considerações da passagem por Belém, onde podemos destacar que o remanejamento para Nova Mazagão, ao contrário do que aconteceu nos deslocamentos anteriores, em bloco, dessa fez foi redirecionado em unidades familiares, em uma espera de até sete anos. Transposição feita através de canoas gigantescas, que comportavam cerca de 50 pessoas em trajeto por igarapés que durava em média 10 dias.
A nova localidade logo recebeu status de vila e teve caracterizações peculiares, assumindo outra identidade da Mazagão africana, destacando-se o isolamento, a identidade mestiça, insatisfações e conflitos pelas dificuldades enfrentadas, clima hostil à população desconhecedora da realidade, episódios de fome, fugas em massa de indígenas e escravos afrodescendentes, saída de muitos mazaganenses deixando para trás familiares, declínio crescente pela escassez de mantimentos e enfrentamento de endemias amazônicas. O autor referencia que no século XIX assumiu a identidade quilombola e uma nova cidade assumiu maior importância nas proximidades, Mazagão Novo em 1915, restando a antiga localidade a lembrança como Mazagão Velho.
Na parte final há descrição da Festa de São Tiago, festejo popular na mistura de religiosidade e paganismo. Os principais momentos são citados e as impressões do autor mostram uma valorização ilusória, pois tanto a Mazagão africana, quanto a Mazagão amazônida tiveram histórias de derrotas e declínio, iludidas em política que inflava os ânimos e encobria a realidade através da religiosidade.
Estas e outras informações enriquecem o livro, com ilustrações diversas. 

Percurso das canoas entre Belém e Nova Mazagão (ilustração do livro).


Em Macapá, está disponível para consultas
na Biblioteca Pública Elcy Lacerda
e Biblioteca Ambiental da SEMA.