As postagens desse blog são em caráter informal, de apego ao saber popular, com seu entusiasmo, exageros, ingenuidade, acertos e erros.
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sábado, 2 de julho de 2011

LENDAS - O boto (animação)

 Animação de Virgílio Vasconcelos, 2007.
(Conheça o site do animador em www.virgiliovasconcelos.com)
 
Gosto muito desses assuntos, não que acredite, é que aprecio explorar esse universo de onde surgiram essas estórias. Remete a uma época de desconhecimento, o homem tentando entender o meio em que vive, a construção da cultura e ideologia nas sociedades. Futuramente, outros investigarão nossa contemporaneidade e o que perpetuará de nossas verdades. Não se descarta o passado e o conhecimento vai se construindo na soma de tudo o que foi experimentado. Quanto desconhecimento hoje de civilizações passadas, seus monumentos emblemáticos. Muita coisa não se sabe mais, páginas da histórias foram dobradas e não preservadas.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

LENDAS - Juro que vi - O Boto

Um desenho com uma estória do boto. Essa animação é legal pois não tem diálogos, há professores que usam no ensino especial. Fazem parte dessa série também ("Juro que vi"): O Curupira, Matinta Perera, IaraO Saci.

Animação produzida pela MULTIRIO, vencedorora de várias prêmios (como o ANIMA MUNDI 2005), com a direção de Humberto Avelar e a narração de Regina Casé.

As lendas oferecem um campo de estudo sempre muito válido na introdução à literatura. Assim foi comigo. Há os que falam de "alienação", mas tem que se ver os objetivos e causas por que se descrevem. 

terça-feira, 21 de junho de 2011

HISTÓRIAS DA VÓ NIKITA: Castelos em Macapá...

O destino e suas faces!

Acreditamos em tantas coisas... Sonhamos em alcançar o que nos faça felizes, buscamos e nos empenhamos na caminhada. Nossa história vai se construindo nesta lida diária e, muitas vezes, nem percebemos que de coisas simples e, às vezes, corriqueiras, novos caminhos vão surgindo, uma história vai se iniciando e a gente vai conhecendo uma face nova do destino. Os sonhos podem ser grandes, maiores, porém, são os desígnios de Deus! Cabendo a nós, envolvidos em mil nuances diante destas portas que se abrem, com ou sem nossa vontade, caminhar firmes, aprendendo, transformando, construindo e sempre optando pelas boas coisas.

"Palafita" - Foto de Nil Muniz
Foi um simples evento que determinou a vinda de minha avó Ana para cá, dando continuidade à construção de sua família: os Ferreira-Castelo do bairro do Trem em Macapá, outrora, ribeirinhos lá nas bandas do Jacarezinho, tantas gerações seguidas e muitos anos atrás.

São lembranças da Vó Nikita todos os acontecimentos aqui presentes.  Rotineiros também na época de sua bisavó Ana e avó Tereza (essa é a culpada do apelido que minha avó nunca gostou e que vou retratando aqui).

"Palafita" - Tela de Manuel Fernando Croskey 
Alexandre Paulo, seu pai (meu bisavô, que tive o prazer de conviver por um tempo) era um homem de singular descrição: branco, loiro, olhos claros e de uma beleza notável principalmente por seu caráter. Era trabalhador, de bons exemplos, gentil, parecendo ter sempre nos lábios um eterno sorriso. Tinha um irmão gêmeo, mas estes só conviveram até a adolescência. O destino mostrou uma de suas faces e levou Pedro Paulo. Homem de fé forte, isso lhe valeu sempre, principalmente nos momentos difíceis de sua vida. Sua vista perdeu-se para sempre quando estava em pleno vigor de seus quarenta e poucos anos, mal que também acometeria minha avó, e mostrou-se forte em seus momentos finais de vida, com a destruição em seu corpo por esse mal que chamamos de câncer. Assim era Alexandre, bonito por sua fé e gentileza. Seu casamento com Vó Marieta durou mais de cinquenta anos. Esta também tem em suas características fatos a descrever: morena, dessas caboclas interioranas com os cabelos compridos e aparência com traços indígenas. Mesmo em sua avançada velhice não teve cabelos brancos... e sem apelar para tinturas. Seu retrato não foge do que é típico nessas bandas do norte, onde as morenas não são altas, com cabelos negros, encaracolados ou lisos, e donas de uma brejeirice a “mundiar” o caboclo. Fala-se tanto do boto, mas não é páreo aos encantamentos de uma bela amazônida com um olhar sedutor a lhe conquistar.

Esse é o casal que vivia às margens do Jacarezinho, meus bisavós maternos, em um barracão muito simples e tão escondido naquelas curvas do rio.  Testemunhas e personagens dessas histórias que estou a lhes contar.

"Amazônia" - Tela de Cecília Queiroz
Não quero mostrar um quadro enganoso, era muito difícil a vida naqueles tempos. Muito difícil mesmo!! Tudo era isolado e sem ajuda diária, valendo-se da força de vontade e providência divina para sobreviver. A malária não dava tréguas, o caboclo podia ser acometido várias vezes. Um local de leishmaniose, pesadelo e perigo circundante naquelas matas, outro mal muito temido. Morria-se de sarampo, de meningite, rubéola e febres desconhecidas, que jogavam o caboclo na rede e o prostravam de maneira sofrida ou irreversível. E ainda não falamos dos encontros com a combóia, escorpiões, arraias, os vampiros... A raiva é até hoje um mal sem cura. O ribeirinho preferia enfrentar o sucuriju com o terçado em mãos do que cair nas mãos do destino num triste episódio de ser picado por esses bichos. Hospitais e médicos eram muito distantes, só nas cidades, dia e meio de remada e de muito sol na cabeça. Uma vez por ano é que apontava por aquelas bandas algum batelão com padre, médico e, quem sabe, juiz. Época de batismos, casamentos e "consulta com o dotô". Pouco tempo de cidadania, grande período de ostracismo...

"Barracão" - Desenho de Rogério Castelo
Euclides da Cunha fincou pés também nesse mundão verde da Amazônia e conheceu um pouco da realidade desse povo à margem da história. Se viu no sertanejo um forte, pode testemunhar que o ribeirinho é um bravo.

Nesse contexto que vivia Alexandre, esse ribeirinho bravo em lutar pelos seus. Foi seringueiro, "soldado da borracha", num tempo em que o mundo explodia na crueldade da guerra. A borracha tinha valor e, como ele, muitos homens entravam nas matas para colher o látex. Todo dia a rotina. Pegava seu facão e cedinho estava em busca das árvores. Riscava  mais  de cem, deixando a seiva cair no cadilho. No caminho inverso, ia recolhendo no balde o que tinha escorrido. Muito trabalho... Quando terminava soava a sapopema ao longe, avisando para os seus de sua vinda. Ana, uma de suas filhas (minha avó), corria a preparar-lhe o café com farinha e, junto com os irmãos,  acendia  o braseiro para a borracha. Do que era colhido formavam umas bolas e todo final de semana vendiam. Tantos dias como esse... Isso durou enquanto Alexandre tinha as vistas. O destino mostrou mais uma face difícil e tirou-lhe da condição de provedor da família, passando a ser cuidado por sua esposa Marieta e filhos. 
 
Seringueiros (respectivamente, ilustração do Pará Histórico e desenho de Percy Lau)

O que o sofrimento não destrói, fortalece, e de forças em Deus que Alexandre sobrevivia com sua família nas margens do Jacarezinho, rio no grandioso Estado do Pará.  
Fui testemunha de sua fé, todo dia fazia orações em vários momentos. Quando passou uns dias em casa, preparava-lhe um pequeno oratório e o conduzia até lá. Não o vi falhar ou faltar com o ânimo nisso.
Alexandre deu seu adeus no ano de 1984, muito debilitado, mas sempre contínuo na fé.  Em sua história muitos fatos que sempre gostei de ouvir e me por a imaginar. 
"Sapopema" - Foto de biblioteca.ibge.gov.br
Conta-se que certa vez em que estava sozinho no trapiche em frente ao barracão, lá no lendário Jacarezinho, ouviu um barulho no matagal próximo, estalos de pau quebrando. Aguçou os ouvidos e percebeu vir em sua direção passos rápidos e pesados. As tábuas do trapiche rangeram ante o peso das passadas apressadas, seguidas de uma respiração profunda e muito sonora a cercar-lhe. Seja o que fosse não respodia às perguntas feitas e ouvia-se apenas aquela respiração cansada e puxada rodeando-lhe sem dizer-lhe palavra. Seu corpo arrepiou-se com o frio sentido, indícios do medo, mas sua fé foi sua força  e com atitude de oração afastou aquilo dali.
Todos daquele barracão cresceram como homens e mulheres fortes. As circunstâncias fizeram de todos caboclos "virados". Todos os ofícios eram desempenhados. Alexandre formou uma família de trabalhadores e não faltou a manutenção em seu lar quando suas vistas se foram. Seus filhos eram Nilzinho (Sebastião), Lóla (Maria Vitória), Ana, Mundinha (Raimunda), Raimundo (Badat) e Lourival.
Os ofícios da vida ribeirinha foram aprendidos. Só não lhes foi dada a oportunidade de estudo quando crianças e adolescentes. Nos fenômenos naturais quanto desconhecimento... Foi numa situação engraçada que viram o eclipse lunar pela pimeira vez. Quando a lua começou a ficar vermelha, Alexandre chamou a filharada e começaram a rezar no trapiche... até que tudo voltou ao normal!! Só depois que explicaram-lhe o fenômeno. E o eclipse solar... Ah! esse foi uma verdadeira lenda. Os seringueiros na mata viram aquele dia claro começar a fechar estranhamente. Chuva? No regresso para casa anoiteceu repentinamente. As galinhas e jacamins estavam todas recolhidas ao puleiro e árvores altas... em plena manhã, com aquela noite misteriosa. As sapopemas ecoaram ao longe, eram os caboclos perdidos na mata, sem poronga e sem visão de nada. Da casa batiam as panelas e paus para tentar orientar o caminho. Tão repentina quanto começou, foi o fim daquela breve noite. As aves desceram ao terreiro e tudo voltou ao normal... fora o susto.
Voltemos nossa atenção para Ana. Daquela geração é a última e dela passo a narrar daqui para frente.....


continua .....

domingo, 5 de junho de 2011

LENDAS DO AMAPÁ - A BACABA

Luta de Bacabá com Catamã. O índio enfrentou
o feiticeiro para livrar sua tribo...
Contam as lendas que na Serra do Tumucumaque existia a tribo dos Badulaques, pequena e fraca, sem muitos guerreiros e cujo chefe, cacique Cabaíba, preferia viver em paz sem invadir as terras de outras tribos. Era considerada uma tribo sem valor e por isso não participava do Grande Conselho das tribos.

Um dia a desgraça se abateu sobre todas as tribos da serra. Poucos se lembravam da grande batalha travada entre o deus Tupã e Catamã, a entidade do mal. Contavam os anciãos que, na batalha, tinha sido devastada uma grande área além da Serra do Tumucumaque e que a luta entre o bem e o mal durara muitas luas até que Tupã, usando de toda sua magia, conseguira aprisionar Catamã no topo da serra por um período de cem anos.

Diziam ainda os anciãos que depois desse tempo de guerra, a fome e a doença atingiriam as tribos, prenunciando a volta de Catamã, que tentaria reerguer seus domínios por toda a terra, mas que um guerreiro, nascido em tribo pequena, se sobressairia dentre todos os seus irmãos em caçadas e lutas, podendo vencer o mal e lançá-lo novamente à sua prisão. Os prenúncios da desgraça chegariam quando Catamã já tivesse cumprido três terços de seu exílio, e assim ocorreu.

Primeiro uma grande doença se abateu sobre as tribos. O mal atacava principalmente os pés e as mãos, impossibilitando os guerreiros, assim como mulheres e crianças, de se locomoverem. Logo não puderam mais segurar o arco e a flecha para caçar e centenas morreram de fome.

Depois vieram as guerras. Tribo contra tribo. As mortes se sucedendo e as nações indígenas enfraquecendo-se cada vez mais. Na época também a tribo dos Badulaques foi atingida e muitas mulheres morreram. Tarirã, uma das esposas do cacique Cabaíba, estava grávida de muitas luas e o cacique temia que fosse atingida pelas pragas ou morta pelas lanças dos guerreiros inimigos. Numa noite Tupã foi até o cacique e em sonhos disse-lhe:
- Teu filho será um bravo. Irá se sobrepor à todos os guerreiros e se chamará Bacabá. Somente ele poderá livrar a nação do mal e destruir para sempre a encarnação da perversidade.
 
PARNA Montanhas do Tumucumaque
Por três noites os membros da tribo dançaram, agradecendo a dádiva de Tupã. Duas luas depois nasceu o menino, que cresceu e foi treinado nas mais diversas práticas de combate, assimilando com incrível facilidade os ensinamentos dos pajés e anciãos. Manejava o arco e a flecha como se tivesse nascido para caçar. Sua grande vitória foi quando o conselho o designou chefe de todas as nações indígenas.

As maldições de Catamã continuavam. Certa noite um feiticeiro apareceu na forma de um feroz cachorro do mato e entrando na tenda do chefe matou Tarirã, que já se encontrava em idade avançada. Pela manhã o corpo da índia foi encontrado dilacerado e Bacabá, furioso, entoou seu canto de morte, que atravessou os vales. Estava iniciado o confronto.

Pela manhã, Bacabá reuniu-se com o Grande Conselho, anunciando que iria enfrentar Catamã no topo da serra. O pajé, tocado pelo deus Tupã, deu-lhe um saquinho de couro contendo a mistura de muitas ervas, que deveria ser jogada no olho da divindade, tornando-a cega. Depois de despedir-se de seus irmãos de sangue, Bacabá armou-se de uma lança, arco e seus apetrechos de guerra e saiu no rumo da serra. Quando alcançou o topo, a figura de um imenso cachorro do mato atravessou-lhe à frente. A fera, com olhos injetados de sangue investiu contra o índio, iniciando uma batalha. Embaixo, milhares de guerreiros assistiam a tudo. Tupã proveu Bacabá de poderes para fazer frente à divindade do mal e o local da batalha transformou-se em uma imensa clareira. Contam os índios mais velhos que a contenda foi terrível. Durante duas noites o confronto prosseguiu e depois o silêncio foi total. Os guerreiros, temerosos, esperavam que o vencedor se manifestasse. O silêncio, no entanto, reinava no cume da Serra do Tumucumaque.

... e da sepultura de Bacabá nasceu a bacabeira
O cacique Cabaíba reuniu seus bravos e subiu à serra, seguindo os rastros de destruição, até que sobre um amontoado de pedras encontraram um imenso cachorro, com os olhos arrancados e uma lança cravada no peito. A seu lado o corpo do guerreiro, dilacerado pelas garras e dentes do monstro. Bacabá venceu, mas a façanha lhe custou a vida. Seu corpo foi sepultado ao lado da mãe, em um cortejo que reuniu milhares de guerreiros, todos lhe prestando a derradeira homenagem.

Muitas luas se passaram até que o cacique Cabaíba, sentindo a perda do filho, foi vê-lo. No local onde tinha sido sepultado, havia, por benevolência e homenagem de Tupã ao mais bravo guerreiro da face da terra, uma palmeira solitária com as folhas em forma de lanças, da qual sobressaíam-se flores de cor branco-amarelo e frutos pequenos avermelhado-escuros. O chefe Cabaíba recolheu os frutos e mandou as mulheres da tribo fazerem um vinho que chamou de bacaba. Da bacabeira, de caule forte, como os braços do guerreiro,são feitos arcos e lanças, que, dizem as lendas, serem abençoados por Tupã.
  
Fonte: Texto extraído do livro "Amapá, cultura, poesia e tradição" de Maria Vilhena Lopes & Deisse GemaqueValente Andrade / Edição de 1997).

quarta-feira, 25 de maio de 2011

LENDAS DO AMAPÁ - A Pororoca

Antigamente a água do rio era amena, calma, e corria mansamente. As canoas à vela e remo navegavam sem perigo algum. A Mãe D'água, mulher do Boto Tucuxi, morava com sua filha mais velha na Baía do Marajó. Certa noite, na hora da janta, ouviram-se gritos: os cães latiram, as galinhas e galos cocoricaram. Tinham roubado Jaci, a canoa de estimação da família.
Remexeram, procuraram e não encontraram nada. Diante do resultado, a Mãe D'água resolveu convocar todos os seu filhos: Repiquete, Correnteza, Rebujo, Remanso, Vazante, Enchente, Preamar, Reponta, Maré Morta e Maré Viva. Ela queria que encalhassem a embarcação desaparecida. No entanto, passaram-se vários anos e nehuma notícia de Jaci. Ninguém a viu entrando em nenhum igarapé, algum furo, ou mesmo atracada em algum lugar. Certamente estava escondida.
Então resolveram chamar também os parentes mais distantes: os lagos, lagoas, igarapés, canais, estreitos, para discutir o caso, ficando provada a necessidade de se criar umas três ou quatro ondas fortes que entrassem em todos os buracos que encontrassem, quebrando, encalhando, destruindo tudo. Assim poderiam encontrar Jaci e o ladrão.
Ficou determinado que a caçula da Mãe D'água, Maré da Lua, moça danada, namoradeira e briguenta, avisasse qualquer coisa anormal que acontecesse.
De repente, pela primeira vez, surge em alguns lugares o fenômeno, empurrando madeira, invadindo rios, naufragando barcos, repartindo ilhas, ameaçando palhoças, derrubando árvores, abrindo furos e amedrontando pescadores.
E até hoje, sempre que a Maré da Lua vai ver a família é um "Deus-nos-acuda": ninguém sabe de Jaci e a cunhantã segue em frente,destruindo quem não ousa sair da frente, cumprindo as ordens do Boto Tucuxi, que resmungando danado da vida, diz: "Pois então continuem arrastano tudo". E assim a pororoca continua.

 Texto de Joseli Dias, no livro "Mitos & Lendas do Amapá"
...Mas que engraçado!! Na mitologia a pororoca é causada por Maré da Lua, filha do Boto Tucuxi, que ficou fulo por lhe roubarem a canoa preferida e nunca mais recuperar. /  Foto: latimesblogs.latimes.com
Veja também:
Cutias do Araguari (Parte 1 - O fenômeno natural da pororoca)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

HISTÓRIAS DA VÓ NIKITA - O Encantado

Se você vivesse ao “Deus dará”, numa região desconhecida, cercando-se de muita coisa estranha e sem que soubesse as causas, em que acreditaria para agir sempre com o mínimo de bom senso? Às experiências vividas e dividas por outros? .... O caminho natural e fácil.
Nos tempos de menina, minha avó Ana presenciou  e viveu algumas dessas. Uma criança tentando entender o mundo em que vivia e, em posse disso, como muitos outros, propagadora de um saber local e único.
Histórias e crendices presentes e marcantes na cultura ribeirinha... Fundamentos a reger a vida de comunidades inteiras, durante gerações seguidas.  
Histórias do interior.... Histórias da Amazônia.
Na grande baía do Jacaré Grande, subindo um pouco um pequeno igarapé, ficava o barracão dos Nunes. Era uma família numerosa, algo comum nesses interiores, onde as caboclas tinham de dez filhos para cima.
Minha avó Ana, matriarca de dez filhos, foi testemunha desta história, na adolescência de seus catorze anos. Hoje, com seus oitenta e três, ainda têm em suas lembranças esses fatos muito nítidos, conforme passo a vos narrar a seguir.
Naquele tempo as famílias viviam da caça e, principalmente, da pesca. Havia uma fartura dessas coisas. Os ribeirinhos distribuíam-se por ali, ocultos nessa exuberância natural, todo dia lutando e buscando novas coisas por sua sobrevivência. Verdadeiros desbravadores, ocupando lugares tão longínquos e desfavorecidos de nossos confortos atuais, que o contentamento geral era ter com que prover sempre suas famílias no dia-a-dia e - abençoe Deus para isso - gozar sempre de boa saúde. Assim era na Amazônia, assim era naquelas matas... Selvagens, virgens e misteriosas.
Outras culturas que ajudavam na obtenção de um pouco de renda eram: a coleta das castanhas da andiroba e muru-muru, para o azeite a ser vendido na cidade, e a borracha extraída das seringueiras. Cedo o caboclo ia para a mata riscar as árvores marcadas para isso.
Uma novidade naquelas bandas era a extração de madeira para fazer dormente. Dava algum lucro, mas sempre era muito trabalhoso. Tinham que arrastar a madeira para a beira do rio e, desprovidos de embarcações, faziam uma jangada e nelas se arriscavam pelas águas sempre perigosas do Jacarezinho. Levando o “progresso” para a cidade... Levando os dormentes para as linhas ferroviárias da época.
O Alípio acordou bem cedo para tirar madeira naquele dia, era um dos varões da família Nunes. Rapaz impetuoso, menos de vinte anos, embrenhava-se sempre nas trilhas da mata sem conhecer o que era perigo.
Pegou o seu machado, facão, lanterna e tomou um rumo tantas vezes percorrido. Primeiro tinha que encontrar bons troncos, talhar o dormente e depois avaliar a situação para melhor transportá-los dali. Isso consumia sempre umas boas horas do dia.
Os Nunes reuniram-se para a caldeirada de peixe no jantar e constataram então a demora do rapaz, imaginavam sempre que estava com um ou outro. Mas, todos ali, nada do Alípio. Já era fim de tarde e o sujeito não retornara desde cedo. Numa mata fechada, com onças, cobras, escorpiões e “visagens”, perder-se é sempre algo perigoso e preocupante. Os caboclos deram uma batida nas proximidades e nada encontraram, para tristeza e desespero de Dona Cordeira, que imaginava seu filho envolto em muitos perigos.
Anoiteceu e deixaram as buscas para o dia seguinte. O Alípio devia ter se metido em mata muito distante. Era um rapaz destemido, mas também convicto até demais disso!
Procuraram no dia seguinte, avançaram na mata, gritavam até se esgoelar, batiam nas sumaúmas com os facões (se você não sabe, esse é um “telefone” da selva), entraram por todas as trilhas conhecidas e nada. A essa altura Dona Cordeira era só prantos. 
Alguns rapazes, avançando um pouco mais na mata, relataram aos outros que acharam o machado e facão do Alípio por cima de uma tora, mas ele não estava ali. Só o que viram foram umas pegadas que seguiram e estranhamente viram terminar às margens de um igarapé distante. Deixaram lá os pertences do mesmo, pois se aparecesse podia precisar. 
Mais uma noite e o Alípio sumido.... Onde estaria e o que teria lhe acontecido? Era o que todos se indagavam.
Três noites e a mesma aflição. Numa ânsia danada, já tinha até quem o dava por morto naquelas paragens. Na casa de minha avó ajudaram também nas buscas.
No quarto dia, quando se encontrava apenas uma de suas irmãs no barracão, preparando o almoço no jirau, qual não foi sua surpresa quando deparou com um assustado e desfigurado Alípio espiando e dizendo:
- Não fala nada prá ninguém que tô aqui! Onde tô é muito bonito! É uma cidade muito bonita onde eles me levaram no fundo do rio! Não queriam me deixar vir, mas eu pedi muito, só prá buscar minhas roupas e voltar. Lá é muito bonito, muito bonito! Não fala nada prá ninguém...
E foi com esse louco palavreado que o Alípio apareceu a sua irmã. Referia-se sempre a “eles” sem citar nomes e a falar de uma cidade nunca vista. Quando viu em sua irmã a intenção de chamar alguém correu e desapareceu na mata.
Os Nunes quando se reuniram e souberam da história, ficaram com uma mistura de alívio e preocupação, o que se passava com seu irmão? Chegaram até a brigar com a moça acreditando que a mesma não tinha nada feito para que ele ficasse.
Continuaram as buscas nos dias seguintes e o rapaz desaparecido naquela mata fechada, onde a noite não se enxergava nem a própria mão.
Acreditando se tratar de algo sobrenatural, chamaram o Manoel Dias, um curandeiro e benzedor muito conhecido naquela localidade. Mistura de médico, psicólogo, padre e "espantador de visagem". Com suas mandingas ele disse que o Alípio estava encantado por Uiara e que deveriam abandonar as buscas que não encontrariam o rapaz. Estava encantado, escondido e possesso do espírito do rio. O que deveriam fazer era aguardá-lo escondidos na casa. Ele ia aparecer. Também deveriam deixar atada a rede mais forte que tivessem e uma cordas bem resistentes.
Dona Cordeira fez segundo as recomendações e, no dia seguinte, deixaram suas ocupações e ficaram no barracão escondidos, à espera do Alípio.
No fim da tarde, finalmente apareceu “o encantado”. Estava desconfiado, com um agir diferente. Pelas frestas das casas viram o estranho Alípio ficar à espreita para ver se tinha alguém. Constatando que não, sorrateiramente saiu da mata e entrou no barracão. Seus irmãos então, assim que o rapaz entrou, fecharam as portas e janelas impedindo a fuga.
O encantado tentou de todas as formas se desvencilhar do braço de seus irmãos. Eram caboclos criados no açaí de maior sustância, mas fizeram muita força para conter o encantado, principalmente porque diziam que ele estava com a pele muito lisa, escapando várias vezes e quase fugindo. Se fossem só três ou quatro, ele teria conseguido.
Todos seguraram o Alípio e o colocaram na rede atada, amarrando-a com muitas voltas da corda. Seguraram também os punhos, pois balançava tanto a ponto de quase rasgar a rede. Falava sempre para deixar-lhe voltar para a cidade.
O Manoel Dias foi chamado às pressas e começou a fazer suas benzeduras até o Alípio se acalmar. Seja de que loucura o rapaz estivesse, foi se acalmando até não manifestar mais o desejo de correr para a mata. Os Nunes mantiveram a guarda nos dias seguintes e o Manoel Dias continuou com suas benzeduras.
Após uma semana foi declarado a quebra do encanto, o Alípio estava livre do espírito do Uiara.

Ana Castelo
Bem, amigos...

Inúmeros casos como esse ocorreram na Amazônia e, por acreditarem em benzedores como o Manoel Dias, outros muitos jovens foram libertos de ter uma vida, sabe-se lá como, de perambular como loucos pela floresta, transformados em almas errantes num breu mortal. Tal Victor (de Aveyron), mas na floresta amazônica, homens perdidos vivendo um encantamento em suas cabeças.  

Morte certa e em poucos dias.


quarta-feira, 11 de maio de 2011

HISTÓRIAS DA VÓ NIKITA - A História do Gonçalo

  "Barracão" - Fiz esse desenho com 15 anos (1988)

Mistérios e mistérios... pode-se dizer assim, quando se vive em uma região tão grande em encantos naturais, quanto em desconhecimento dos fatos presentes nas coisas  cotidianas que nos cercam. Assim é a Amazônia. 
Quando observo hoje todas as mídias disponíveis... cheia de bites, banda larga, High definition e o que mais for... num mundo de informações rápidas e à disposição fácil...vejo esse desconhecimento muito presente em grande parte da população sobre essas bandas de cá.
Há quem pense que aqui só tem índio, onça na rua, ou nem tenha civilização. Parece ridículo, mas é no que muitos acreditam, nesse mundo globalizado e evoluído.
Oras! Se hoje há tanta suposição, que dizer de uma Amazônia de trinta, setenta... cem ou mais anos atrás! Povoada de cidadãos sem a metade das condições e oportunidades hoje a nós oferecida.
Um lugar triplicado em mistérios, onde as histórias eram contadas e passadas, não como simples engodo, mas...de certa forma....como orientação e aprendizagem nas famílias.
Meus avós me contavam essas histórias... por serem as personagens ou por terem ouvido de seus pais. Sempre gostei de ouvi-las e deixo nestas linhas um pouco desse passado a se extinguir em todas as mentes... mas que formaram a nossa identidade cultural.
Ana, minha tataraseiláoquevó, contou a sua filha Tereza, que contou a sua filha Marieta, que contou a minha avó Ana – Nikita para os íntimos - que foi quem me contou. Será mais um dos muitos delírios daqueles tempos... sei lá? Mas coisas sempre ocorriam e a informação, em todas as épocas, é sempre fundamento vital para nossa existência.  

Aconteceu há mais de cem anos lá no rio Jacaré Grande. O Gonçalo tinha um barracão onde morava com sua família (de nomes, só sobrou a lembrança de sua filha Raimunda). Era um sujeito pacato e trabalhador em um comércio próximo, caracterizado por apresentar um trapiche muito grande na frente. Local para atracação e descarga de mercadorias.
Num lugar em que os lampiões e lamparinas reinavam todas as noites, era costume dormir cedo, de manhã todos tinham muito o que fazer. Cedinho ir pescar, lavar roupa no igarapé, tirar açaí...tanta coisa, tanta coisa.  
Foi por volta das 18 h que se iniciou essa história. Raimunda estava um dia sozinha lá na ponta do trapichão... espairecia um pouco da lida para tratar de se recolher ao seu barracão. Televisão, novelas? Ah! Isso era uma uma regalia para gerações futuras. O lugar era ermo e sossegado. Na boca da noite poucos vinham em busca de mantimentos no comércio pertinho.
Até que um dia... Murmúrios, movimentos próximos, Raimunda voltou sua atenção para as bandas de um aningal. Não era comum agito por ali, cheio de poraquês e carapanãs a esta hora, quem poderia se meter ali? Só podia ser ladrão, querendo roubar o comércio... Foi o que pensou.
Quase em seguida, eis que surge uma "montaria", mas não uma qualquer, era dessas de dar gosto de ver e passear. Bem feita e pintada, mas também diferente por apresentar três homens muito bem alinhados, com terno branco e chapéu de couro com uma fita preta. Sujeitos nunca vistos antes. Remaram até sumir na primeira curva do rio.
Vô Apolinário e Vó Ana (1998)
Raimunda recolheu-se ao barracão e contou os fatos ao Gonçalo, seu pai. Evidentemente o homem ficou cismado, pois conhecia todo mundo naquelas paragens e nada sabia dos sujeitos.
Na hora de maior sono, palmas em frente à casa. Gonçalo pulou da cama e foi verificar, nada de gente! E palmas novamente! O homem começou a ficar bravo e espraguejar, principalmente pelas pedradas seguidas que se iniciaram sobre a casa. Só pode ser moleque, certamente esses rapazes que sua filha viu e que deveriam estar com ela para roubar-lhe e sumir no mundo. A cada pedrada e palmas o homem ficava mais furioso ainda, a ponto de dicutir ferrenhamente com seus parentes. Gritava, espraguejava, e queria agredir sua filha, a quem sempre acusava. Para maior espanto de seus familiares, qual a razão disso? Já que nada viam ou ouviam!
O Gonçalo estava transformado, parecia não ser o mesmo. Só quando suas forças se esgotaram que dormiu profundamente, para alívio de todos, tão assustados e sem o porquê da situação.
Os dias seguintes não foram mais os mesmos..... Gonçalo entrara numa situação de abatimento profundo. Pouco falava, desinteressado de tudo e com longas horas falando baixinho e sozinho. Buscavam e imaginavam causas a essa “panemagem” mas, em terras onde acreditava-se em uiara e matinta-pereira, de benzedeiras e pajelanças (únicos meios de se agarrar a uma “assistência em saúde”) logo se mitificou a situação. Lembraram da história da Raimunda e dos rapazes desconhecidos e concluíram: Só poderiam ser botos “mundiando” mais uma pobre alma para  carregá-la a seu mundo encantado. 
Talvez por quererem ver, acreditarem sinceramente nestas coisas, houve muitos relatos de verem o Gonçalo, que gostava de ficar sozinho na ponta do trapiche, estar sempre acompanhado e conversando com três rapazes. Uns contaram até que avistaram um deles pulando na água e sumindo, aparecendo logo em seguida um boto. Diga-se aqui que era comum botos transitarem por essas paragens, principalmente nos horários de menor movimento, como no entardecer e perto do trapiche...tão avançado no rio.  
Acreditando-se ou não, diante do sentimento de impossibilidade de curar o Gonçalo, deixaram-no com suas “visagens” e sempre um frio percorria o corpo de quem avistava-o no trapiche “conversando com os botos”, de quem já era encantado!

Mistérios na Amazônia... Verdade ou mentira, ficou o fato do Gonçalo morrer pouquíssimo tempo depois e, naquele trapiche, ninguém querer circular sozinho à noite.

Você talvez estranhe essa história, não são os botos vistos sempre como conquistadores? Sim, mas ali, na mente de todos era mais que isso, eram símbolos de morte quando simpatizavam com a alma de alguém. Acreditou-se por muito tempo nisso e, de boato em boato, aí está mais um fato marcante na história e agir de todos daquele lugar e tempo... um pouco acima das três bocas, tantos anos atrás, lá nas margens do Jacaré grande!!

"Barracão" - Desenho de Isabelly (9 anos), miha sobrinha (2011)

sábado, 7 de maio de 2011

Histórias da Vó Nikita - Encontro com botos no rio Jacaré Grande

"A cultura brasileira é vasta e rica no campo das lendas. Devemos considerar que lenda não significa necessariamente uma mentira, e nem uma verdade absoluta. O que podemos e devemos deduzir é que uma história para ser criada, defendida e o mais importante, ter sobrevivido na memória das pessoas, deve ter no mínimo um pouco de fatos verídicos. Um fator desconhecido ao qual deu-se livres interpretações, todas procurando elucidar os fatos e criando assim um conhecimento aceitável pela grande massa...desejosa de entendimento."
No Amapá, como não poderia ser diferente, temos muitas lendas, repassadas por nossos avós, pais ou conhecidos. Histórias e estórias que traduzem um saber local e que caracterizaram nossa identidade cultura.
Quando converso com minha avó Ana (Nikita) e lembrando das histórias de meu saudoso avô Apolinário (Branco Velho), esses fatos tornam-se bastante evidentes.
Uma das histórias presentes em minhas lembranças é a seguinte...
Lá pelos idos de 1930, época sem eletricidade nas casas, nem escola para as crianças ribeirinhas, de muita peleja desde cedo e  sobrevivência árdua numa terra de exuberâncias e mistérios naturais, às margens do rio Jacaré Grande, interior do Pará, viviam Alexandre, sua esposa Marieta e os filhos Nilzinho, Lóla, Ana, Mundinha, Raimundo e Lourival. Algo comum naquele mundaréu de selva, onde tantas famílias viviam de maneira muita parecida, a não ser pelos fatos que rotineiramente as cercavam e que se mitificaram nas descrições que hoje chegam a nós.
Aquele foi um dia difícil e de pânico para minha avó e seus irmãos, um dos dias em que meu bisavô levava a família para visitar seus parentes numa localidade próxima, distante várias remadas.
Como homem prudente que era, Alexandre escolheu o melhor “casco” e minha bisavó Marieta cedo arrumou a garotada, diga-se de passagem, sempre animada em dias como esse.
Todos na “montaria” e remos para que te quero! 
Logo, logo, um evento nunca visto por eles começou a se desenrolar.
Primeiro foi um boto.....boiou ali perto e desapareceu. Depois foram dois, com manobras espetaculares como a se exibir....três, quatro, todos se aproximando e seguindo a canoa.   
Eram botos vermelhos (também chamados de malhados, hoje boto rosa) e, segundo minha avó, esses  animais eram temidos pelos caboclos, talvez pelo tamanho, mas sobretudo pelo desconhecimento. Minha avó dizia que dos botos tucuxis não tinham medo, eles até espantavam os vermelhos dali. Mas destes últimos... Ah! Era um medo de sair da água na hora que apareciam.
Enfim, um frenesi instalou-se ao redor da canoa, quase não dava para remar, eram a essa altura vários e pulavam muito rente. Exibiam a cauda, pulavam dois, três juntos e tão próximos que balançavam o casco. Para minha avó, ver aquelas cabeçonas vermelhas de perto no meio do rio era algo apavorante. Oras, vemos um quadro de dificuldades àquela família, com a criançada eufórica e meu bisavô tentando afastá-los dali. Ficou pior quando começaram a passar por baixo da canoa e bater no fundo dela, balançando ainda mais até quase virar. Imagine aquelas silhuetas todas aparecendo e sumindo por todos os lados que nem uns fantasmas. A família segurava as bordas para a canoa não virar e os botos continuavam pulando e batendo. Isso durou alguns minutos até que Alexandre, detentor do conhecimento para a situação, com seu facão fez uma cruz imaginária na água e, com algumas palavras de oração, espetou este no meio da canoa. Não sei o porquê disso, mas o fato resultante é que na hora os botos mergulharam e boiaram bem longe, se afastando definitivamente.
Esse foi o fato narrado por minha vozinha e, cá com meus botões em pleno século XXI (não sou nenhum biólogo) também não sei a razão disso tudo, mas sei que de histórias como esta é que foram construídas as lendas que chegam até nós. Oras, não dá para imaginar que os botos queriam virar a canoa e levá-los encantados para o fundo do rio?  Digo apenas que a história é esta e a continuidade disso está na sua imaginação!!!!

quinta-feira, 28 de abril de 2011

LENDAS DO AMAPÁ - A família do boto tucuxi

Ilustração de Honorato Júnior
A cabocla estava doente, muito doente. Desde as primeiras semanas de gravidez ela já sabia que a criança em seu ventre corria o risco de não conhecer o mundo. Já havia tentado de tudo medicou-se com ervas e chás, mandou benzer e puxar a barriga e até mesmo tomou a beberagem que a mãe de santo lhe deu, sem perceber qualquer resultado.
"É um caso perdido", diziam os moradores da Ilha de Santana, consternados com o sofrimento da mulher que se retorcia em dores terríveis. Mas sua dor maior estava na alma. Era a dor de estar perdendo a criança a cada dia que passava. A cabocla nem mesmo tinha certeza de que ocorrera a gravidez. Tudo parecia irreal, como um sonho. Ela lembrava da festa, da música romântica que subitamente a transportou ao trapiche, caminhando devagar, sonolenta, embriagada. A mulher lembrava que ali a esperava um homem alto, muito bonito e perfumado, trajando paletó branco e chapéu de carnaúba. Esquisito agora que pensava nisso, descobrir que em nenhum momento ele tirava o chapéu, nem mesmo para cumprimentá-la. Fizeram amor sob a luz do luar e dormiram araçados, ouvindo o barulho das ondas batendo no cais. Acordou com um imenso gosto de mar na boca e uma certeza: estava grávida.
Desde muito cedo ela também descobriu que seu filho não teria grandes chances de nascer. Era estranho, no entanto, que embora não tenha visto o pai da criança, lembrasse dele com perfeição, os olhos de um azul muito profundo, cada vez que olhava para o mar. Ela também percebeu que quando se aproximava das águas, a dor cessava quase que por encanto e uma paz muito profunda se apossava de sua alma. E era então que a cabocla sentia como se lhe afagassem o ventre, ninando a criança  fazendo-lhe mil promessas de amor.

Boto Rosa (Na Amazônia chamado de boto vermelho)
Boto Tucuxi
Um tema de muita influência na Amazônia, sendo encontrado em filmes, animações, teatro, escultura, desenho, pintura, livros, música e festividades, além de crendices miraculosas para se tornar um Dom Juan... Peraí, esta última não é digna de perpetuação, pois para isso há quem queira o @#%*# do coitado do boto! Pior que muita gente acredita...

A gravidez contiuava. O ventre crescia e junto com ele a preocupação da cabocla. Já havia consultado um médico na capital e sido informada de um problema no útero, que não lhe permitiria ter o filho sem grandes riscos de vida. Foi só quando faltavam poucos dias para dar a luz que a mulher descobriu.
Leitura Recomendada
Lembou-se das histórias de um moço muito bonito e muito louro que aparecia nos trapiches, conquistando moças virgens e deixando um filho no ventre delas. Mas a cabocla sabia que desta vez seria diferente. Quando sentia as dores do parto, alguma coisa a fez olhar pela janela. Foi quando viu o moço, envergando um fino paletó braco, de pé na cabeça do trapiche.
A cabocla não se assustou. Levantou-se da cama e foi ao encontro de seu amado. As dores, como que por encanto, desapareceram por completo. Uma estranha força, como um calor, penetrou em seu ventre, levando saúde ao bebê.
A cabocla continuou a caminhar até perceber que a maré tinha subido e lhe tocava os pés. E todos na casa viram quando a cabocla, carregando a criança no colo e acompanhada de um moço muito bonito e vestido de branco, atirou-se no rio.
O boto tucuxi voltou para buscar sua família
         
Texto do livro "Mitos e Lendas do Amapá" de Joseli Dias

domingo, 24 de abril de 2011

LENDAS DO AMAPÁ - O Tarumã

Tronco do Tarumã, navegando  o rio Calçoene
Dizem que, há muitos anos, às margens do Rio Calçoene, havia uma pequena aldeia indígena. Era ali que vivia Ubiraci, curumim conhecedor da fauna e da flora. Desde que nasceu, Ubiraci foi abençoado por Tupã com o dom de falar com todos os animais, fossem eles da água, da terra ou do ar, e com todas as árvores, desde as menores até as que cortavam as nuvens e iam fazer sombra no reino de Tupã. Ubiraci conversava com os bichos e com as árvores, contava-lhes histórias e sabia de tudo o que acontecia no mundo. E foi assim que cresceu em plena harmonia com os elementos, filho da água, da terra e do ar que era. Um dia, Ubiraci caminhava pela floresta quando descobriu a mais linda indiazinha que seus olhos já tinham visto. Seus cabelos pareciam com as quedas-d’água que despontavam das pedras, onde, por tantas vezes, sentou-se por horas a escutar os pássaros. Seus olhos assemelhavam-se ao anil do céu. Seu rosto jovem lembrava brotos nascendo da terra, ainda indomados. Suas mãos, mágicas, se tocavam o solo, desabrochavam sementes. Se voltadas para o ar, controlavam as chuvas, os ventos e as tempestades. Se apontadas para os rios, domavam as marés, as pororocas e as maresias. Ubiraci, sem saber, havia se apaixonado pela Natureza. Apaixonado, o índio passou a procurar sua amada por toda parte. Com ajuda dos pássaros, subiu na nuvem mais alta na esperança de vê-la entre os abençoados de Tupã. Vasculhou cada recanto da floresta e acompanhou os peixes na imensidão dos rios, mas nunca voltou a rever sua alma gêmea. Acompanhou a pororoca por entre troncos e barrancos, mas não voltou a vê-la. No entanto, podia senti-la no canto dos pássaros, nas brisas da manhã, na calidez da noite e no sussurro sereno das maresias.
Era tanta a paixão que sentia que Ubiraci se esqueceu de conversar com as árvores, com os animais e com os filhos das águas. O dom que recebeu de Tupã foi perdido para sempre. Ubiraci só se importava em procurar pela amada, que julgava estar perdida em algum lugar do mundo. Ele não entendia que a Natureza estava em todo lugar.
Uma noite, quando o mundo dormia, quando os cantos dos pássaros haviam cessado e não se ouvia murmúrio algum no seio da floresta, Ubiraci avistou a Lua, refletida na água. Imaginou que era naquele mundo que sua amada vivia. Foi tanta a sua felicidade que esqueceu-se de ter perdido seu dom. Mergulhou no rio, mas quanto mais lutava contra a correnteza, mais parecia que a Lua se afastava dele. Foi tanto o esforço que fez que as forças o abandonaram, e Ubiraci sucumbiu à morte. Tupã, compadecido com tanto amor, pediu à Natureza que transformasse Ubiraci em uma árvore, no meio do rio, para que fosse lembrado para sempre. À noite, no entanto, quando a maré subia, a árvore estranhamente desprendia suas raízes do solo e navegava contra a correnteza. Imaginando tratar-se de magia, seus irmãos índios cortaram a árvore, deixando apenas o tronco, mas, mesmo assim, o mistério continuou, e eles, amedrontados, deixaram o local, com medo do tarumã, que, na etimologia indígena, significa o tronco que se move. Os anos se passaram, Calçoene transformou-se em cidade, mas muitas pessoas juram que, ainda nos dias de hoje, o tronco se move, contra a correnteza, subindo o rio. Dizem que, quando algum morador depara-se com um amor impossível, faz promessa ao tarumã, deixando sobre ele algum presente ou alguma oferenda. Se o tronco navegar rio acima e retornar vazio, o pedido será realizado.


Texto do livro "Mitos e Lendas do Amapá" de Joseli Dias


Rio Calçoene
Calçoene é o local onde mais chove no Brasil, com uma precipitação média anual de 4.165 mm, sendo que em 2000 foram registrados quase 7.000 mm de chuva. Comparativamente chove 3 vezes mais neste município do que em todo município de São Paulo. Entre janeiro e junho foram registradas uma média de 25 dias de chuvas por mês; o que significa que chove praticamente todos os dias.
A história de Calçoene começa em 1893 quando, a esse tempo, foi descoberto ouro no leito de rio do mesmo nome. Com isso, a questão do Contestado Franco-Brasileiro se reascendeu, com vários conflitos envolvendo brasileiros e franceses da Caiena, culminando com a vitória dos brasileiros e a anexação da área, antes contestada pela França, ao Brasil em 1900. Assim, a atual cidade de Calçoene teve origem do movimento de garimpeiros e faiscadores do ouro.


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