"Barracão" - Fiz esse desenho com 15 anos (1988) |
Mistérios e
mistérios... pode-se dizer assim, quando se vive em uma região tão
grande em encantos naturais, quanto em desconhecimento dos fatos
presentes nas coisas cotidianas que nos cercam. Assim é a Amazônia.
Quando observo hoje todas as mídias disponíveis... cheia de bites, banda larga, High definition e o que mais for... num mundo de informações rápidas e à disposição fácil...vejo esse desconhecimento muito presente em grande parte da população sobre essas bandas de cá.
Há quem pense que aqui só tem índio, onça na rua, ou nem tenha civilização. Parece ridículo, mas é no que muitos acreditam, nesse mundo globalizado e evoluído.
Oras! Se hoje há tanta suposição, que dizer de uma Amazônia de trinta, setenta... cem ou mais anos atrás! Povoada de cidadãos sem a metade das condições e oportunidades hoje a nós oferecida.
Um lugar triplicado em mistérios, onde as histórias eram contadas e passadas, não como simples engodo, mas...de certa forma....como orientação e aprendizagem nas famílias.
Meus avós me contavam essas histórias... por serem as personagens ou por terem ouvido de seus pais. Sempre gostei de ouvi-las e deixo nestas linhas um pouco desse passado a se extinguir em todas as mentes... mas que formaram a nossa identidade cultural.
Ana, minha tataraseiláoquevó, contou a sua filha Tereza, que contou a sua filha Marieta, que contou a minha avó Ana – Nikita para os íntimos - que foi quem me contou. Será mais um dos muitos delírios daqueles tempos... sei lá? Mas coisas sempre ocorriam e a informação, em todas as épocas, é sempre fundamento vital para nossa existência.
Aconteceu há mais de cem anos lá no rio Jacaré Grande. O Gonçalo tinha um barracão onde morava com sua família (de nomes, só sobrou a lembrança de sua filha Raimunda). Era um sujeito pacato e trabalhador em um comércio próximo, caracterizado por apresentar um trapiche muito grande na frente. Local para atracação e descarga de mercadorias.
Num lugar em que os lampiões e lamparinas reinavam todas as noites, era costume dormir cedo, de manhã todos tinham muito o que fazer. Cedinho ir pescar, lavar roupa no igarapé, tirar açaí...tanta coisa, tanta coisa.
Foi por volta das 18 h que se iniciou essa história. Raimunda estava um dia sozinha lá na ponta do trapichão... espairecia um pouco da lida para tratar de se recolher ao seu barracão. Televisão, novelas? Ah! Isso era uma uma regalia para gerações futuras. O lugar era ermo e sossegado. Na boca da noite poucos vinham em busca de mantimentos no comércio pertinho.
Até que um dia... Murmúrios, movimentos próximos, Raimunda voltou sua atenção para as bandas de um aningal. Não era comum agito por ali, cheio de poraquês e carapanãs a esta hora, quem poderia se meter ali? Só podia ser ladrão, querendo roubar o comércio... Foi o que pensou.
Quase em seguida, eis que surge uma "montaria", mas não uma qualquer, era dessas de dar gosto de ver e passear. Bem feita e pintada, mas também diferente por apresentar três homens muito bem alinhados, com terno branco e chapéu de couro com uma fita preta. Sujeitos nunca vistos antes. Remaram até sumir na primeira curva do rio.
Na hora de maior sono, palmas em frente à casa. Gonçalo pulou da cama e foi verificar, nada de gente! E palmas novamente! O homem começou a ficar bravo e espraguejar, principalmente pelas pedradas seguidas que se iniciaram sobre a casa. Só pode ser moleque, certamente esses rapazes que sua filha viu e que deveriam estar com ela para roubar-lhe e sumir no mundo. A cada pedrada e palmas o homem ficava mais furioso ainda, a ponto de dicutir ferrenhamente com seus parentes. Gritava, espraguejava, e queria agredir sua filha, a quem sempre acusava. Para maior espanto de seus familiares, qual a razão disso? Já que nada viam ou ouviam!
O Gonçalo estava transformado, parecia não ser o mesmo. Só quando suas forças se esgotaram que dormiu profundamente, para alívio de todos, tão assustados e sem o porquê da situação.
Os dias seguintes não foram mais os mesmos..... Gonçalo entrara numa situação de abatimento profundo. Pouco falava, desinteressado de tudo e com longas horas falando baixinho e sozinho. Buscavam e imaginavam causas a essa “panemagem” mas, em terras onde acreditava-se em uiara e matinta-pereira, de benzedeiras e pajelanças (únicos meios de se agarrar a uma “assistência em saúde”) logo se mitificou a situação. Lembraram da história da Raimunda e dos rapazes desconhecidos e concluíram: Só poderiam ser botos “mundiando” mais uma pobre alma para carregá-la a seu mundo encantado.
Talvez por quererem ver, acreditarem sinceramente nestas coisas, houve muitos relatos de verem o Gonçalo, que gostava de ficar sozinho na ponta do trapiche, estar sempre acompanhado e conversando com três rapazes. Uns contaram até que avistaram um deles pulando na água e sumindo, aparecendo logo em seguida um boto. Diga-se aqui que era comum botos transitarem por essas paragens, principalmente nos horários de menor movimento, como no entardecer e perto do trapiche...tão avançado no rio.
Acreditando-se ou não, diante do sentimento de impossibilidade de curar o Gonçalo, deixaram-no com suas “visagens” e sempre um frio percorria o corpo de quem avistava-o no trapiche “conversando com os botos”, de quem já era encantado!
Mistérios na Amazônia... Verdade ou mentira, ficou o fato do Gonçalo morrer pouquíssimo tempo depois e, naquele trapiche, ninguém querer circular sozinho à noite.
Você talvez estranhe essa história, não são os botos vistos sempre como conquistadores? Sim, mas ali, na mente de todos era mais que isso, eram símbolos de morte quando simpatizavam com a alma de alguém. Acreditou-se por muito tempo nisso e, de boato em boato, aí está mais um fato marcante na história e agir de todos daquele lugar e tempo... um pouco acima das três bocas, tantos anos atrás, lá nas margens do Jacaré grande!!
"Barracão" - Desenho de Isabelly (9 anos), miha sobrinha (2011)
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