As postagens desse blog são em caráter informal, de apego ao saber popular, com seu entusiasmo, exageros, ingenuidade, acertos e erros.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

HISTÓRIAS DA VÓ NIKITA - O Encantado

Se você vivesse ao “Deus dará”, numa região desconhecida, cercando-se de muita coisa estranha e sem que soubesse as causas, em que acreditaria para agir sempre com o mínimo de bom senso? Às experiências vividas e dividas por outros? .... O caminho natural e fácil.
Nos tempos de menina, minha avó Ana presenciou  e viveu algumas dessas. Uma criança tentando entender o mundo em que vivia e, em posse disso, como muitos outros, propagadora de um saber local e único.
Histórias e crendices presentes e marcantes na cultura ribeirinha... Fundamentos a reger a vida de comunidades inteiras, durante gerações seguidas.  
Histórias do interior.... Histórias da Amazônia.
Na grande baía do Jacaré Grande, subindo um pouco um pequeno igarapé, ficava o barracão dos Nunes. Era uma família numerosa, algo comum nesses interiores, onde as caboclas tinham de dez filhos para cima.
Minha avó Ana, matriarca de dez filhos, foi testemunha desta história, na adolescência de seus catorze anos. Hoje, com seus oitenta e três, ainda têm em suas lembranças esses fatos muito nítidos, conforme passo a vos narrar a seguir.
Naquele tempo as famílias viviam da caça e, principalmente, da pesca. Havia uma fartura dessas coisas. Os ribeirinhos distribuíam-se por ali, ocultos nessa exuberância natural, todo dia lutando e buscando novas coisas por sua sobrevivência. Verdadeiros desbravadores, ocupando lugares tão longínquos e desfavorecidos de nossos confortos atuais, que o contentamento geral era ter com que prover sempre suas famílias no dia-a-dia e - abençoe Deus para isso - gozar sempre de boa saúde. Assim era na Amazônia, assim era naquelas matas... Selvagens, virgens e misteriosas.
Outras culturas que ajudavam na obtenção de um pouco de renda eram: a coleta das castanhas da andiroba e muru-muru, para o azeite a ser vendido na cidade, e a borracha extraída das seringueiras. Cedo o caboclo ia para a mata riscar as árvores marcadas para isso.
Uma novidade naquelas bandas era a extração de madeira para fazer dormente. Dava algum lucro, mas sempre era muito trabalhoso. Tinham que arrastar a madeira para a beira do rio e, desprovidos de embarcações, faziam uma jangada e nelas se arriscavam pelas águas sempre perigosas do Jacarezinho. Levando o “progresso” para a cidade... Levando os dormentes para as linhas ferroviárias da época.
O Alípio acordou bem cedo para tirar madeira naquele dia, era um dos varões da família Nunes. Rapaz impetuoso, menos de vinte anos, embrenhava-se sempre nas trilhas da mata sem conhecer o que era perigo.
Pegou o seu machado, facão, lanterna e tomou um rumo tantas vezes percorrido. Primeiro tinha que encontrar bons troncos, talhar o dormente e depois avaliar a situação para melhor transportá-los dali. Isso consumia sempre umas boas horas do dia.
Os Nunes reuniram-se para a caldeirada de peixe no jantar e constataram então a demora do rapaz, imaginavam sempre que estava com um ou outro. Mas, todos ali, nada do Alípio. Já era fim de tarde e o sujeito não retornara desde cedo. Numa mata fechada, com onças, cobras, escorpiões e “visagens”, perder-se é sempre algo perigoso e preocupante. Os caboclos deram uma batida nas proximidades e nada encontraram, para tristeza e desespero de Dona Cordeira, que imaginava seu filho envolto em muitos perigos.
Anoiteceu e deixaram as buscas para o dia seguinte. O Alípio devia ter se metido em mata muito distante. Era um rapaz destemido, mas também convicto até demais disso!
Procuraram no dia seguinte, avançaram na mata, gritavam até se esgoelar, batiam nas sumaúmas com os facões (se você não sabe, esse é um “telefone” da selva), entraram por todas as trilhas conhecidas e nada. A essa altura Dona Cordeira era só prantos. 
Alguns rapazes, avançando um pouco mais na mata, relataram aos outros que acharam o machado e facão do Alípio por cima de uma tora, mas ele não estava ali. Só o que viram foram umas pegadas que seguiram e estranhamente viram terminar às margens de um igarapé distante. Deixaram lá os pertences do mesmo, pois se aparecesse podia precisar. 
Mais uma noite e o Alípio sumido.... Onde estaria e o que teria lhe acontecido? Era o que todos se indagavam.
Três noites e a mesma aflição. Numa ânsia danada, já tinha até quem o dava por morto naquelas paragens. Na casa de minha avó ajudaram também nas buscas.
No quarto dia, quando se encontrava apenas uma de suas irmãs no barracão, preparando o almoço no jirau, qual não foi sua surpresa quando deparou com um assustado e desfigurado Alípio espiando e dizendo:
- Não fala nada prá ninguém que tô aqui! Onde tô é muito bonito! É uma cidade muito bonita onde eles me levaram no fundo do rio! Não queriam me deixar vir, mas eu pedi muito, só prá buscar minhas roupas e voltar. Lá é muito bonito, muito bonito! Não fala nada prá ninguém...
E foi com esse louco palavreado que o Alípio apareceu a sua irmã. Referia-se sempre a “eles” sem citar nomes e a falar de uma cidade nunca vista. Quando viu em sua irmã a intenção de chamar alguém correu e desapareceu na mata.
Os Nunes quando se reuniram e souberam da história, ficaram com uma mistura de alívio e preocupação, o que se passava com seu irmão? Chegaram até a brigar com a moça acreditando que a mesma não tinha nada feito para que ele ficasse.
Continuaram as buscas nos dias seguintes e o rapaz desaparecido naquela mata fechada, onde a noite não se enxergava nem a própria mão.
Acreditando se tratar de algo sobrenatural, chamaram o Manoel Dias, um curandeiro e benzedor muito conhecido naquela localidade. Mistura de médico, psicólogo, padre e "espantador de visagem". Com suas mandingas ele disse que o Alípio estava encantado por Uiara e que deveriam abandonar as buscas que não encontrariam o rapaz. Estava encantado, escondido e possesso do espírito do rio. O que deveriam fazer era aguardá-lo escondidos na casa. Ele ia aparecer. Também deveriam deixar atada a rede mais forte que tivessem e uma cordas bem resistentes.
Dona Cordeira fez segundo as recomendações e, no dia seguinte, deixaram suas ocupações e ficaram no barracão escondidos, à espera do Alípio.
No fim da tarde, finalmente apareceu “o encantado”. Estava desconfiado, com um agir diferente. Pelas frestas das casas viram o estranho Alípio ficar à espreita para ver se tinha alguém. Constatando que não, sorrateiramente saiu da mata e entrou no barracão. Seus irmãos então, assim que o rapaz entrou, fecharam as portas e janelas impedindo a fuga.
O encantado tentou de todas as formas se desvencilhar do braço de seus irmãos. Eram caboclos criados no açaí de maior sustância, mas fizeram muita força para conter o encantado, principalmente porque diziam que ele estava com a pele muito lisa, escapando várias vezes e quase fugindo. Se fossem só três ou quatro, ele teria conseguido.
Todos seguraram o Alípio e o colocaram na rede atada, amarrando-a com muitas voltas da corda. Seguraram também os punhos, pois balançava tanto a ponto de quase rasgar a rede. Falava sempre para deixar-lhe voltar para a cidade.
O Manoel Dias foi chamado às pressas e começou a fazer suas benzeduras até o Alípio se acalmar. Seja de que loucura o rapaz estivesse, foi se acalmando até não manifestar mais o desejo de correr para a mata. Os Nunes mantiveram a guarda nos dias seguintes e o Manoel Dias continuou com suas benzeduras.
Após uma semana foi declarado a quebra do encanto, o Alípio estava livre do espírito do Uiara.

Ana Castelo
Bem, amigos...

Inúmeros casos como esse ocorreram na Amazônia e, por acreditarem em benzedores como o Manoel Dias, outros muitos jovens foram libertos de ter uma vida, sabe-se lá como, de perambular como loucos pela floresta, transformados em almas errantes num breu mortal. Tal Victor (de Aveyron), mas na floresta amazônica, homens perdidos vivendo um encantamento em suas cabeças.  

Morte certa e em poucos dias.