As postagens desse blog são em caráter informal, de apego ao saber popular, com seu entusiasmo, exageros, ingenuidade, acertos e erros.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Carolina Maria de Jesus

Carolina Maria de Jesus (1914-1977), mineira, nascida em Sacramento, foi uma das primeiras escritoras negras do Brasil, considerada das mais importantes do país. Viveu boa parte de sua vida na favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, sustentando a si mesma e seus três filhos como catadora de papel. Em 1960 teve seu diário publicado sob o nome "Quarto de Despejo: diário de uma favelada", com auxílio do jornalista Audálio Dantas. O livro fez enorme sucesso, sendo traduzido para vários países e catorze línguas. Também foi compositora, poeta e sua obra permanece objeto de diversos estudos, tanto no Brasil quanto no exterior.
Fonte:
Wikipédia

Fonte: Revista Galileu

Nas férias de Julho, aproveitei para ler suas obras. Quatro foram publicadas pela autora e as demais de maneira póstuma.


Uma obra que impacta e sensibiliza sobre determinada realidade social brasileira. Os relatos são viscerais, em meio de desafios diários e ferrenhos à sobrevivência e dignidade humana. Tudo o que havia lido sobre o livro se confirmou, contudo, a leitura ainda reservou surpresas, que se expressam na percepção de mundo que mistura simplicidade, certa ingenuidade e, sobretudo, resiliência impressionante. É o que vemos em muitas frases e postura de Carolina...
Contextualizando, a obra foi publicada em 1960, com relatos de Carolina Maria de Jesus em sua vida na favela do Canindé (onde hoje se situa a Marginal do Tietê), registrados na forma de diário. Quando publicados, tiveram grande repercussão nacional e internacional, pela identidade da autora, que tinha vários elementos que a discriminavam (uma mulher semialfabetizada, negra, mãe solteira e favelada), pela estética da obra (mesclando simplicidade literária com experiências profundamente traumáticas) e pela realidade do contexto (pouco conhecido na dimensão exposta no livro). Carolina não é uma estudiosa da situação "no lado de fora", mas alguém do meio, com todas as marcas determinadas pelo contexto.
Algo que chamou a atenção foi o apego da autora pelos diários, como se os tornasse amigos confidentes em seus momentos de revolta, tristeza, dores, desamparo e desabafos, onde parecia reunir forças no raciocínio conclusivo em palavras. Há momentos em que fala do direcionamento dessas coisas, em seu meio, em realidade comum para a bebedeira, para a violência e para o suicídio, o que reforçava seu apego pela escrita, como escape. Percepção que se transforma em veracidade que cativa. A autora, metaforicamente, tem nos textos um amigo que a escuta e em quem deposita certa esperança, subentendida na divulgação em livro que alcance mecanismos que transformem a realidade a partir do conhecimento.
A fome é tema recorrente, praticamente um vilão na obra, com relatos desumanos, além da prostituição, violência, injustiça, preconceito, descaso político e outras facetas de uma sociedade marginalizada (o quarto de despejo, como a autora denominou a favela).
Falando em sociedade, a favela parece meio mais acirrado porque não tem a conotação de comunidade como se divulga e é vivenciado hoje. Era cada um por si, sem dó, nem visão comunitária, potencializando a solidão e desamparo de todos.
Um registro histórico importante é que o livro foi publicado através da ajuda do jornalista Audálio Dantas. Revela também a característica de muita discriminação no contexto, pois as portas se abriram somente através do repórter, não nas anteriores buscas de Carolina.
Nos primeiros capítulos é extremamente simples, para depois ter construções mais elaboradas. Vejo isso em razão do gradativo entusiasmo e apego da autora pelos escritos, e também na possível influência do jornalista, que conheceu a autora dois anos antes do livro ser publicado.  Registre-se que fez correções editoriais antes da publicação. Acredito, porém, que conservou a essência, em nada diminuindo a veracidade marcante do livro.
Algumas frases da obra:
"Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem."
"Gosto de fica sozinha e lendo. Ou escrevendo!"
"Se eu pudesse mudar dessa favela! Tenho impressão de que estou no inferno!"
"Está escrevendo, negra fedida!"
"...Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas que conheço com mais atenção. Quero enviar um sorriso amável às crianças e aos operários."
"A fome é também uma professora."

Enfim, livro emocionante, para reflexão sobre realidade vivenciada na favela onde morava Carolina de Jesus. Transpõem, porém, esse limite, transformando-se num retrato de desamparo e luta do brasileiro.
Os relatos são muitos, não vou me deter em detalhamentos mais que isso. Leia o livro e tenha suas conclusões.


A leitura é significativa quando se deseja conhecer a biografia de Carolina. Isolado desse aspecto pode não parecer interessante. Foi seu segundo livro.
Cronologicamente, situa-se entre a ascensão meteórica da autora (que impactou o meio social e literário com o visceral "Quarto de despejo") e o ostracismo no qual caiu e morreu dentro de poucos anos.
Carolina, observadora detalhista do meio em que viveu por 12 anos (a favela Canindé, chamada por ela de quarto de despejo da sociedade) conta, em forma de diário também, realidade nova que sonhara e desejara, onde não há fome em seu lar e as portas se abrem para solução de suas dificuldades. Carolina saiu da favela para morar em uma casa de alvenaria em São Paulo.
O texto é essencialmente narrativo e as reflexões são subjetivas no olhar crítico do leitor, capaz de identificar (ou não) interesses escusos em volta da autora, numa busca de privilégios fáceis diante de sua repentina notoriedade. Tem também o meio preconceito, de maneira sutil ou escancarada, e a falácia política, que diferencia-se do "Quarto" pela ausência de personagens no contexto daquele, mas que assemelha-se na mesma inoperância de ações.
Ver o glamour nesse livro e pensar no antes e pós essa fase, é algo que também impacta. A notoriedade de Carolina era grande, com encontros com pessoas famosas (Pelé, Jorge Amado e Éder Jofre foram citados), destaque em bailes da sociedade, entrevistas a revistas famosas (nacionais e internacionais), adaptação do livro para o teatro. Muita coisa se mobilizou diante da fama de "Quarto de Despejo"...
Se naquele livro a pobreza era protagonista em facetas cruéis, principalmente a fome, neste a sociedade interesseira se projeta.
Curioso que, nos relatos do livro, há pessoas que se interessaram em conhecer a realidade retratada por Carolina, para depois querer se afastar numa sutil posição de repulsa quando testemunhou de perto.
Foi o que senti com o livro, aberto a discussões. É aquele tipo de leitura valorosa quando há percepção de seu contexto.
Num devaneio final, pensei também o seguinte: "Quarto de Despejo" é olhar de revolta, "Casa de Alvenaria" é olhar com ilusão e decepção. 



Romance caracterizado por simplicidade narrativa e reflexão sobre determinada realidade social. Não poderia ser outra se não a de vivência da autora, a favela. Carolina transforma suas experiências e observações numa história em que o leitor adentra esse contexto, envolto por sensações, impactos e percepções que talvez sejam descobertas, em um meio ainda muito ignorado de suas verdades atrozes na época.
Em sua simplicidade, o texto apresenta certa ingenuidade nas personagens, marcadas por visão de mundo centrada apenas em seu meio, com ações desencontradas fora dele, como se as coisas se resumissem apenas no que conheciam, ignorando-se e não dando importância ao que vá além desses limites.
Dois contextos são apresentados. Inicialmente o da vida privilegiada por quem tem dinheiro, representada pela família do coronel Fagundes, que tem certa notoriedade em sua região, num canto do país pouco detalhado pela autora. Depois a pobreza, que se torna crescente em perdas, dificuldades, decepções e experiências cruelmente desumanas, sendo ápice a mudança para a favela, onde Carolina, tal qual em "Quarto de Despejo", apresenta as mazelas e facetas rotineiras através do protagonismo de Maria Clara, uma Fagundes que acaba vivendo história de Cinderela às avessas.
A obra pode parecer clichê, em seus desdobramentos ingênuos para justificar a história, mas acredito que o termo mais acertado é uma visão empírica. É observação da autora no que o mundo cotidiano lhe revelava. Coisas como: rico explorando o pobre nas oportunidades surgidas; preconceito contra aquilo que é desconhecido; o pobre se colocando numa posição derrotada ante situações de desesperança quando não tem ideal; e, logicamente, retrato cotidiano da favela nas faces de fome, abandono, tristeza, sofrimento...

A autora sutilmente instiga que existem conceitos além da realidade vivenciada. No mundo dos ricos, por exemplo, há acusação aos desfavorecidos, como se fossem culpados. "Vivem nesse meio e mesmo assim tem muitos filhos!", é uma delas, quando "do outro lado" não existe nem o que comer dignamente no dia, quanto mais o mínimo de educação (como planejamento familiar). 
Da mesma forma no contexto da pobreza, imperam seduções recorrentes para práticas de vida direcionadas para coisas como: entrega à bebida, suicídio, violência, como se fossem inevitáveis. É aí que entra uma das abordagens corriqueiras de Carolina, que traz admiração como pessoa: é alguém que fala sempre de ideal - uma postura a buscar e cultivar, um caminho que vê ante as barreiras - é sua busca e valorização para a educação. "Quarto de despejo" traz essa proposta; em "Casa de Alvenaria" a parte mais interessante é a que fala que o homem tem que vestir ideal como roupa; seu livro "Provérbios" é uma ode a isso também; e agora nessa obra a mesma observância, como em sua postura ante o casal protagonista, quando diz que é um casal sem ideal.
História muito simples, imperativa para mensagem ideológica, sobretudo no pensamento do coronel quando reencontra a filha na favela, em que tece considerações similares a de políticos, mas nas proposições necessárias, não na descarada hipocrisia e inoperância. Certamente... Falou através dele Carolina, nas considerações e devaneios.
Não é uma história essencialmente romântica, é de aprendizagem (a duras penas) de uma realidade ignorada, através da vivência, quando Maria Clara, iludida por sua visão de mundo, faz uma transição mais que sofrida de seu castelo de sonhos para uma vida que a leva para a favela. Importante ressaltar que a favela retratada no livro tem as marcas de seu contexto de época.
Obra com muita ingenuidade no desenrolar, sem capítulos definidos (algo que não curti, entendendo na espontaneidade da autora), mas com certa beleza e força que seduzem, principalmente quando percebemos: vontade de revelar e trazer transformações.



Carolina de Jesus dá vazão a pensamentos diversos nessa obra. 
Traçando certo paralelo, "Quarto de despejo" traz um testemunho impactante, sem excessos dissertativos, simplesmente expondo realidade nua e crua. "Provérbios", fazendo jus ao nome, se traduz no raciocínio, visão de mundo, o que a autora gostaria ou pensa que deveria existir, seja em seu meio, seja na vida em diferentes aspectos. Antídoto para a miséria, o sofrimento, a dor e injustiças...
É desabafo confidente a amigo, sensação que os textos transmitem. Dá para perceber pela própria data de publicação, em 1963. Ora, mesmo ano em que Kennedy foi assassinado (fim de Novembro), vendo-se manifestações da autora, em que sua visão sobre o presidente é de lamento, pela perda de alguém em quem imaginava ação contra aquilo que lhe inspirava reação também.
Muita coisa é subjetiva, aberta a discussões, sujeita a discordâncias, mas todas são críticas em postura de insatisfação ou anelos (o que é importante).
Carolina fala de sabedoria, de amor, de injustiça, da fome, de más escolhas, do trabalho, da dignidade, da corrupção, de espiritualidade, enfim, o que via e pensava sobre.
Boa parte deu para reconhecer como versículos bíblicos, literais ou parafraseados, e sobre isso dou graças a Deus por quem transforma as palavras do Senhor em suas também, principalmente quando expressas na ação. Outra parte parece vir de descobertas na literatura universal, em frases mais rebuscadas (vivas para a aprendizagem de boas coisas!) e o que deu maior sensação como experiência e identidade da autora está na segunda metade do livro, onde há valorização de pensamentos específicos sobre o meio.
Encerro com frases do livro, melhor dizendo, provérbios (na forma como Carolina escreveu)
"Um povo inculto forma um país sem alicerce."
"Os tipos que quer nos conservar submisso atrofia o nosso ideal."
"É o homem quem faz guerra. É o homem quem sofre na guerra."
"Os países ricos pensam que são superiores. Um país com povo culto e pacífico é que é superior."

"Quando desiludimos de tudo, a vida perde o valor."
"A honra do homem é uma bússola em sua vida."
Leitura interessante e instigante para reflexões.


Obra póstuma, publicada na década de 1980, segundo as informações, como uma das últimas de Carolina, que entregou a jornalistas franceses. Antes de nosso país, teve edições na França e Portugal. 
É um livro muito interessante, em que Carolina resgata memórias da infância e adolescência, porém, estas vão além de sua biografia e, tal qual 'Quarto de Despejo' no impacto revelador sobre a favela, constitui-se também em um relato visceral sobre a sociedade preconceituosa, machista, exploradora e injusta no cotidiano do país.
Bitita (Carolina na infância), de maneira pragmática tem a percepção e descoberta de muitas coisas de seu contexto, provocando-lhe reações que variam entre a ingenuidade da menina e a criticidade da escritora. Ilustrando o primeiro aspecto, o posicionamento da menina em desejar ser homem ou em não querer ter ninguém quando crescer (reflexos ao que via do machismo) e, no segundo aspecto, observações sobre a história da escravidão em nosso pais, com considerações sensacionais.
O racismo, a exploração do pobre e a opressão à mulher são os temas mais presentes, em exemplos práticos observados e vivenciados por Bitita.
Chama também atenção o posicionamento idealista da menina, motivado e esperançoso de transformações pelo que lia e valorizava nos livros. Por conta disso, no contexto em que vivia de desapego a eles, muitos a interpretavam erroneamente e até mesmo canalizavam para mais preconceito, quando a viam com seus livros. É o que contou quando, no entusiasmo pela obra-prima de Camões, era rotineiramente vista com o clássico e um dicionário para ajudar na leitura. O povo dizia que era coisa de feiticeira e só podia ser o livro de São Cipriano. Diante dos fatos, persistia o entusiasmo da menina pela educação, pelo saber transformador, expressos na literatura... Alicerce para o que a motivaria em "Quarto de despejo'.
As histórias são ambientadas na segunda e terceira década do século passado, iniciando em Minas Gerais (principalmente em Sacramento) até a mudança para São Paulo. Os fatores determinantes foram o que Bitita relatava: exploração, pobreza, racismo.
Finalizando, as obras de Carolina são marcadas pela simplicidade textual e este livro é diferenciado nesse sentido. Tive impressão de ser, textualmente falando, o mais elaborado.
Gostei bastante, depois de "Quarto de Despejo" é a obra que mais curti de Carolina. Instiga muitas reflexões, infelizmente, ainda por coisas recorrentes em nossa realidade.


Antologia pessoal (1996)

Obra póstuma, publicada em 1996, quase duas décadas depois da morte da autora. Corresponde a uma de suas vontades, que em vida não conseguiu realizar, a publicação de sua poesia.
O livro traz introduções com um olhar sobre a obra e biografia de Carolina, em artigos que correspondem a quase um quarto da publicação. Em comum, observações sobre a simplicidade textual, algo notório que projetou a autora em "Quarto de despejo", mas que não teve a mesma repercussão nas obras seguintes, onde Carolina foi sendo olvidada em sua proposta inovadora no contexto de época. Acho que sofreu impactos do mercado voltado ao lucro e de visão cultural fechada em determinados conceitos. É o que os artigos sugerem...
Hoje é devidamente reconhecida como uma das mais importantes escritoras do país, pelas mesmas (e principalmente) singularidades que a tornaram conhecida.
No que é mais importante do livro, a poesia de Carolina tem a beleza singela da cultura popular, expressando-se com espontaneidade e simplicidade, em visão de mundo que tem lamentos (boa parte da poesia tem essa caracterização) mas sem declinar para a desesperança ou falta de entusiasmo pela vida. Os lamentos são saudosos de momentos felizes, de lembranças maternas ou em situações de perdas (filho, amigo ou alguém admirado). Também por falta de um amor, de trabalho e dignidade... Implicitamente trazem um posicionamento esperançoso, principalmente quando a poeta fala de espiritualidade e amor... 
Enfim, é uma beleza peculiar, algumas vezes bem-humorada ou com ingenuidade, e até mesmo com visão conservadora em certas coisas, que denotam sua simplicidade.
Deixo em registro "Meu Brasil" (um tanto ilusório, demonstrativo de percepção esperançosa), "Lua-de-mel" (história de amor desencantado), "Deus" (visão de igualdade que deveria prevalecer), "Súplica do encarcerado" e "Marginal" (parecem observações de fatos reais, de realidade recorrente, plenamente testemunhada) e "Quadros" (também parece devaneio sobre a própria vida). Referências em ilustração...
Dá sensação de que a poesia foi descoberta realizadora para a autora, ilustrada, por exemplo, em entusiasmo por certos poetas, a quem homenageia no mesmo caminho de suas inspirações (como a Casimiro de Abreu em "Meus oito anos", quando Carolina tem devaneios em expressões similares).

Obra publicada em 2014, centenário do nascimento de Carolina Maria de Jesus, com dois textos inéditos (Onde estaes Felicidade? e Favela). Traz também sete artigos interessantes sobre os livros e biografia da escritora, anexo fotográfico com o tema favela, além de imagens dos cadernos originais de Carolina. Os textos foram publicados conforme escritos, na ortografia que justifica o título. Uma forma de dar ênfase ao contexto de simplicidade e singularidade da autora.
Falando em simplicidade, "Onde estaes Felicidade?" é um conto de beleza singela, onde a felicidade é realidade com pouca coisa. As palavras iniciais a evocam como sonho comum (Não existe neste mundo, quem não acalenta um sonho intimamente. Quem não aspire possuir algo que lhe proporcione uma existência isenta de sacrifícios..) e a proposição de Carolina é uma história em que a percebemos como escolha em coisas simples, em que é possível ser muito feliz. 

Assim é o companheirismo valorizado na descoberta e entrega ao amor entre José dos Anjos e Maria da Felicidade. Tem essa linha de raciocínio, de sonho perto, possível, real, verdadeiro, presente, suficiente, simples e fácil, reservado para todos, bastando descobrir. Carolina era idealista e o conto expressa a felicidade sem impossibilidade, sem complexidade.
Esse mundo de felicidade fácil e plena é abalado pela chegada de uma pessoa. Um viajante, que se intromete na harmonia do casal similar a serpente no Paraíso, tentando, seduzindo e gerando nova visão na vida, despertando cobiça, instigando que algumas coisas da simplicidade são loucura, em realizações apegadas ao material. Felicidade sucumbe a essa sedução e parte com o viajante, provocando melancólica busca de José dos Anjos por ela: "Onde estaes Felicidade?". E também não é a busca de todos nós? Numa visão do que afinal seja...
Não é a única interpretação possível, porém, nestes termos, gostei bastante!
Não considero "Favela" um conto. É texto de confidências, em que Carolina conta sua história de chegada à favela, num misto de desabafo, ansiedade, decepção, esperança e desesperança... Tem a caracterização de seu apego aos diários como amigos íntimos, seus confidentes. Um desabafo, agora não só a seus cadernos...
Na parte dos artigos, todos são interessantes, mas curti principalmente:
- "Antes de ser mulher, é inteira poeta: Carolina e o cânone literário", de Mariana Santos de Assis. Me identifiquei com algumas de suas conclusões (como o fato de Carolina nunca ter se colocado como ativista de conotação política ou racial) e o texto faz abordagem detalhista do primeiro conto (embora em percepção diferenciada do que me impactou e guardei em associação).
- "Um diálogo com Carolina Maria de Jesus", de Fernanda Matos, especialmente pela abordagem a "Diário de Bitita", obra sensacional. "Quarto" impacta, enquanto "Bitita" disserta, sobre várias realidades nas observação e vivência de Carolina.
As fotos mostram a favela da atualidade. Em paralelo à realidade vivenciada por Carolina, é um mundo menos agressivo e mais organizado. Curioso que todas as fotos são coloridas, enquanto as fotos de Carolina e seu contexto (todas que até o momento encontrei) são sempre em preto e branco, acentuando mais a melancolia e drama que expunha em seus diários.

Obra póstuma, publicada em 1996, com três momentos diferenciados da autora, representados por mudança geográfica e social, com pensamento que exprimia no contexto. Os textos estão organizados na forma como Carolina Maria de Jesus ficou conhecida, em relatos de diário, que alguns denominam carolinianos. Mais que impressões pessoais, refletem a sociedade em uma parcela até então sem voz própria, em que a autora é tida como vanguardista pelo retrato autêntico e fiel, sem aprumo literário buscando valorização na estética, apenas como solitário desabafo. 
O livro resgata relatos da vida na favela Canindé, o primeiro momento da obra (Diários no Quarto de Despejo), onde se expressam dificuldades e solidão de amparo social, em lutas acirradas, comuns e cotidianas. O texto tem posicionamentos de revolta, tristeza, dor, variando entre esperança e desesperança. Um retrato humano, impulsionado pelo desejo de revelar, encontrar soluções, movido muitas vezes pela fome, raiva e desilusões.
Algo muito característico é que os diários tem a percepção de um amigo a quem se desabafa e compartilha intimidades. Entre as peculiaridades, a revolta de Carolina com a indolência dos homens, bebedeira e ignorância, principalmente quando há desapego ao conhecimento, representado nos livros. Essa é a razão de muitos verem seus diários como algo estranho, atípico àquele meio, o que justifica o título escolhido para a obra. A autora usa isso a seu favor, quase que como uma arma, no sentido de expressar que vai registrar o que testemunha e, entre alguns, soar como surreal e incompreendido desconforto. Acho que o conhecimento, a revelação, era como a exposição da nudez.
Uma parte muito forte, sem amenizações da autora, é o relato sobre a descoberta da sexualidade no contexto, em que crianças aprendiam coisas de maneira grotesca e impactante ao testemunhar discussões comuns, altamente pornográficas entre moradores. 
O segundo momento (Diários na Casa de Alvenaria), corresponde à mudança de Carolina para residência em outra localidade, em 1961, por conta do dinheiro que ganhou com o lançamento do "Quarto de Despejo" em 1960. Os relatos sugestionam que foram escritos após a publicação de "Casa de Alvenaria" (onde detalha melhor essa realidade nova), pois o respectivo livro e lançamento foram referenciados.
Reitero as mesmas impressões que tive quando li a obra, o momento expressa certa ilusão em Carolina, impulsionada pelo sucesso e sonhadora em seu idealismo. Acho que a maior ilustração disso é seu posicionamento não tão incisivo ao preconceito contra pobres e negros no início. Ela os descreve, parecendo, às vezes, entende-los como culpa também dos que são discriminados. Pesa aí um pouco do seu idealismo, e certa ilusão momentânea, como se tudo estivesse sujeito a cada um, talvez por conta do sucesso que teve.
No avançar dos relatos, percebemos que os posicionamentos vão sofrendo impactos e a euforia inicial vai dando lugar a crescente desilusão.
Carolina fala de políticos (como Juscelino e Ademar de Barros, em descontentamento e decepção), se sente enganada, crendo num retorno financeiro abaixo do que o sucesso do livro evidenciava, com frustração em alguns projetos. É como se percebesse outras dificuldades e injustiças no contexto, na sociedade, que não se resolviam apenas na satisfação do que mais lhe impactava na vida na favela. Um jogo de interesses escusos muito grande.
"Diários no Sítio", o terceiro momento, corresponde à mudança para a região de Parelheiros. Os relatos lembram o vigor em "Quarto de Despejo", com Carolina com criticidade incisiva ao preconceito, à injustiças sociais, insatisfeita e aborrecida. É um desabafo extremamente humano, calejado pelas experiências. 
Similar a outras obras póstumas de Carolina, o livro traz vários artigos. Destes, gostei principalmente de:
"A percepção de um brasileiro", de J. C. S. B. Melhy - destaca o contexto de surgimento de "Quarto de Despejo", onde havia movimento de valorização à crônica urbana, com Nelson Rodrigues exprimindo a vida como ela é, o que encontrou representatividade inovadora em Carolina de Jesus.
"Três utopias de uma certa Carolina" - Não consegui identificar o autor, faz síntese muito interessante sobre a obra de Carolina. O texto é curto e vale a conferida.

Com essa obra encerrei a leitura de oito livros de Carolina, que havia separado para minhas férias. Existem outros, gostaria de conhece-los também, mas estes foram os que tive acesso.
A leitura foi muito produtiva, trazendo reflexões sobre o contexto social brasileiro e sobre essa peculiar e esquecida autora no cenário nacional.
Tem sido redescoberta, mas em meios fechados, como o acadêmico, não costumando aparecer em livros escolares (o que precisa ser corrigido). Críticas também para o cinema nacional, que até hoje não a levou para as telas.


Conheça o disco lançado por Carolina Maria de Jesus, em 1961, no embalo do sucesso de seu livro "Quarto de Despejo", best-seller de 1960. Tem o mesmo nome do livro, com sambas raiz e outros ritmos populares, sobre o contexto dos diários de Carolina. 



Outras fontes interessantes, com link para os informes originais das revistas:
- Revista O Cruzeiro (Ano XXXI - Nº 36 - 20 de Junho de 1959) - Primeira reportagem sobre Carolina de Jesus em uma revista.
- Revista Manchete (Edição 560 - Ano 10 - 12 de Janeiro de 1963) - Encontro com uma jovem escritora ativista israelense (Yael Dayan)
- Revista O Cruzeiro (Ano XXXII - Nº 48 - 10 de Setembro de 1960) - Reportagem sobre o lançamento de "Quarto de Despejo", um sucesso com proporções inéditas.
- Revista O Cruzeiro (Ano XLIII - Nº 16 - 21 de Abril de 1971) - A pobreza voltou. Última reportagem na revista O Cruzeiro.
- Revista Manchete (Edição 439 - Ano 08 - 17 de Setembro de 1960) - Primeira reportagem sobre Carolina Maria de Jesus na revista Manchete.
- Revista Manchete (Nº 1096 - Ano 10 - 21 de Abril de 1973) - Última reportagem sobre Carolina na revista Manchete.

"Poética da Diáspora" - Documentário idealizado por Pesquisa Fapesp (2015).

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Baluarte da luta contra os piratas e saqueadores (Revista O Cruzeiro - 04/11/1950)

Fortaleza de São José de Macapá em reportagem publicada na revista O Cruzeiro, de 04 de Novembro de 1950. O texto é de Jorge Ferreira e as fotos de Roberto Maia.

O FORTE DE SÃO JOSÉ DE MACAPÁ, imponente obra de Portugal na Amazônia, foi inaugurado em 04/02/1782, dezoito anos depois de iniciada a sua construção, que obedeceu ao sistema do famoso marechal francês Vauban. Notem o quadrilátero central com os baluartes se projetando agressivamente nas quinas.
A largura da muralha é fabulosa: 7 homens de braços abertos.
Portão de entrada.
Do lado de dentro, a guarnição portuguesa defendia o local.
Naquele tempo, fazia-se diariamente a ronda extramuros, para evitar surpresas funestas.
O soldado colonial usava farda semelhante a esta, que envergou também 
a Guarda Territorial do Amapá, nos dias de festa no forte.
Portões de ferro como esse eram usados na defesa interna, isolando os baluartes.
A bandeira colonial subia aos céus na ponta 
do baluarte que dominava sobranceiro o rio Amazonas.
Sentinelas postadas nas guaritas dos baluartes velavam pela segurança 
da fortaleza real de Macapá.
O canhão pronto para abrir fogo, os artilheiros se punham a postos,
 cada um a cargo de uma operação.
Munição para os canhões do Forte de São José: petardos redondos de ferro. 
O municiador trazia a bala, amontoada com outras por detrás dos canhões, 
e colocava-a no cano.
O socador, manejado com habilidade e precisão por um dos homens, 
empurrava carga e bala cano abaixo.
O estopim aceso era levado à mecha da espoleta que ia deflagrar a carga,
lançando o projétil.
 Afastavam-se então os artilheiros para evitar 
o choque do recuo do canhão no momento da explosão.
O atirador, porém, permanecia em seu posto.
A carga se incendiava em meio a grande fumaceira.
Por El-Rei e Portugal! Lá vai bala!
E lá vai ela, mesmo. Com tanta velocidade que, de redonda, virou oblonga, como se pode ver no meio da fumaceira que solta o canhão do século XVIII.
Conversa de soldados, à sombra protetora das velhas muralhas, 
um dos bastiões da nossa integridade.
Fortaleza de São José de Macapá, 
bastião da nacionalidade na Amazônia!

Texto da reportagem na íntegra:
Baluarte da luta contra os ... by on Scribd

segunda-feira, 1 de julho de 2019

A Casa dos Padres (Ricardo Smith, 2008)

Um povo de muitas memórias é um povo que cultua a inteligência e o respeito por seus antepassados; assim podemos falar de um povo do extremo norte do país. No Estado do Amapá, ao longo dos anos, percebemos que seus habitantes não medem esforços para registrar o que vai marcando a história.
Ricardo Smith, que tem descendência alemã, mas que teve o privilégio de ser amazônida, viveu o que também marcou a vida desse povo nos anos 60/70: a Casa dos Padres. É dessa casa que ele abre as janelas e vive a paisagem com pessoas como Estandico, Edu, Rock Lane, Professora Ernestina, Tia Nenê, Pe. Jorge Basile, D. Eulice, mãe do autor, e tantos outros que o leitor vai conhecer. Pessoas simples, que fizeram a história nessa época. O que Ricardo traz são histórias vividas por seus contemporâneos, que tem pouco ou quase nada de registro. Caso se pergunte para autoridades do setor de Transporte o que era o "Caixa de Cebola" nos anos 60 em Macapá, só vai responder quem conheceu a cidade da época. Esses detalhes são revelados em "A Casa dos Padres".
Enfim, um livro que fala do Pe. Antônio Cocco e Biroba, e outros, contando suas histórias e estórias... A Casa dos Padres é um livro marcado pela irreverência e simplicidade de sua gente. 
Ricardo, a palavra é sua...
JOSÉ AMORAS
(Apresentação do livro)

Título: A Casa dos Padres
Autor: Ricardo Smith
Editora: Smith Produções Gráficas Ltda
Ano: 2008
Páginas: 104

Ricardo Smith, amapaense nascido em Oiapoque, mistura lembranças de sua infância com a história de Macapá nas décadas de 60 e 70. A obra é referencial interessante na percepção da época, com informações do cotidiano, eventos de destaque, costumes e atrativos no recorte temporal.
Destaque para informações sobre o antigo seminário na Ilha de Santana (educandário de origem católica também conhecido como o orfanato São José, impressionante como não tenha sobrado quase nada da antiga construção em poucas décadas); para o Cine João XXIII (point da juventude do contexto); para as histórias e importância histórica da Prelazia de Macapá (segundo o autor, abrigou também o Colégio Comercial do Amapá) e para os relatos sobre o Caixa de Cebola (primeiro ônibus da cidade, com histórias que se misturaram ao folclore).
O livro tem também relatos da passagem do autor pelo interior do Pará e, apesar de serem suas lembranças, o protagonismo da história é transferido para um menino chamado Edu. Acompanhamos este da infância à adolescência nas terras tucujus. 
Leitura curiosa, divertida enquanto observação de época, enriquecida com fotografias de relevância histórica (principalmente a do educandário na Ilha de Santana, pouco conhecida).
Registro final, o título é alusão a local de encontro rotineiro da juventude macapaense na década de 1960, a Casa dos Padres.
Trapiche com alunos do seminário em Santana (foto e informação publicada no livro)
Uma leitura sugerida pela
Biblioteca Ambiental da SEMA
em Macapá

terça-feira, 18 de junho de 2019

Biblioteca do TJAP em Macapá (2019)

Reportagem sobre a Biblioteca do Tribunal de Justiça do Amapá, exibida em 17/06/2019 na TV-AP, com imagens de Edson Ribeiro e apresentação de Narah Pollyne.


Com mais de 22 mil títulos, entre livros de Direito e História do Amapá, a Biblioteca Juiz Francisco Souza de Oliveira, localizada dentro do prédio do Tribunal de Justiça (TJAP), atrai servidores e estudantes de concursos públicos, que buscam conteúdo atualizado e gratuito, em um espaço adequado para pesquisas. 
Cerca de 90% do acervo é de livros de Direito, mas o espaço conta ainda com obras literárias diversas, revistas, trabalhos acadêmicos, jornais, periódicos e outras mídias. 
Além disso, no local encontram-se processos antigos, abertos para consulta pública no museu existente no local. 
Foto: jdia.com.br
O TJAP está localizado na Rua General Rondon, no centro de Macapá, e a biblioteca está aberta ao público em geral de segunda a sexta-feira, das 7h30 às 14h30.
O texto da reportagem foi disponibilizado na íntegra em g1.globo.com/ap e o vídeo original em globoplay.globo.com.   
Confira também este LINK com outra reportagem sobre a biblioteca, produzida em 2012.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

No limiar da incredulidade (Alci Conceição de Jesus)

Quando, em circunstâncias adversas, passamos por dificuldades, às vezes, chegamos ao início da incredulidade. Não sei qual o seu problema, mas sei que ele tem solução. 
Esta obra tem como objetivo geral contribuir para a diminuição do uso e abuso de substância entorpecente. O meu principal alvo é o ser humano despertar a força de vontade que existe dentro de cada um, ajudá-lo através de uma boa leitura a superar dificuldades. 
Acredito que o caminho do saber é uma fórmula eficaz ao convívio social.    
(Alci Conceição de Jesus)


Título:  No limiar da incredulidade 
Autor: Alci Conceição de Jesus
Editora: Gráfica e Editora Brasil
Ano: 2005
Páginas: 84

Pensei que a obra abordaria a questão das drogas e vícios. Conheci o autor, educador palestrante na área, mas o direcionamento foi outro, numa agradável surpresa.

É um livro poético, que enaltece a vida, o amor, a espiritualidade, os sonhos, o recomeço, a poesia.

Duas coisas se destacam e a primeira é a simplicidade da sabedoria popular, concepção expressa em cada texto de maneira tocante, principalmente quando percebemos o segundo aspecto na identidade do livro...

No limiar da incredulidade traduz um recomeço, diante de abismo que poderia ser ponto final a vida, com textos de apego ardoroso ao saber, a Deus, às artes. Tem relação com o testemunho de vida de Alci Conceição, um sobrevivente das drogas que, entre outras coisas, vivenciou o submundo do crime e cárcere. É aí que entra o poder transformador em Jesus Cristo e redirecionamento. Os textos expressam o momento de descobertas, onde aflora o recomeço e esse ardor em novidade de vida é o segundo aspecto.

O livro traz a biografia de Alci, poesia de momentos diversos e textos com reflexões.

Gostei principalmente de Um clarão na escuridão (singelo autoretrato), Querida mamãe (mensagem no cárcere, escrita no mês de Maio) e Paixão (declaração de amor).

Mais informações sobre o autor em:


Em Macapá, 
a obra está disponível para leituras na 
Biblioteca Pública Elcy Lacerda

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Ensaio sobre a cegueira (José Saramago)

Ensaio sobre a Cegueira é um romance do escritor português José Saramago, publicado em 1995 e traduzido para diversas línguas. A obra narra a história da epidemia de cegueira branca que se espalha por uma cidade, causando um grande colapso na vida das pessoas e abalando as estruturas sociais. O romance se tornou um dos mais famosos e renomados do autor e fora, sem dúvida, um dos principais motivos para a escolha dele ao Prêmio Nobel de Literatura em 1998.
Fonte: Wikipédia 


Título: Ensaio sobre a cegueira
Autor: José Saramago
Editora: Companhia da Letras
Páginas: 312
Ano 1995

Certo homem de ações impiedosas um dia encontrou luz que provocou-lhe cegueira, seguindo-se transformação radical quando percebeu que, mais que a debilidade nos olhos, sua maior cegueira era no coração, referente ao obscurantismo em que vivia. História do apóstolo Paulo em seu encontro com o Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Breve lembrança que misturou-se aos primeiros momentos da leitura e ajudou-me a ter direcionamento em algo aparentemente confuso e caótico. É um livro sobre o obscurantismo, em metáfora para o viver, a história que, em temos gerais, tem se construído na humanidade, onde as primeiras ações daquele homem citado se repetem na indiferença à percepção. 
A tal cegueira branca expressa no livro é como uma página nova diante de cada um dos afetados, onde a vida é redirecionada na percepção do oportunismo, injustiça, egoísmo, exploração, insensibilidade e barreiras criadas entre as pessoas. Esses e outros elementos determinam histórias de sofrimento, de decadência, de disposições horrendas, tudo em proceder insensível para quem pratica, como se fossem justificáveis. Os olhos então se abrem para essas coisas na experimentação, ficando cegos para ver.
O livro é um tanto pessimista, pois enfatiza esses aspectos intrínsecos à humanidade, o que somos, revelando-se indistintamente como prática entre todos. Os cegos padecem sob elas, mas também praticam. Uns tem noção, outros não. Será preciso ficar cego para vê-las? O livro é oportunidade para que não...
Com certeza é obra aberta a mais interpretações, mas essas me satisfazem.
Referências também para o texto, idealizado em estética alguma coisa está fora da ordem mundial. Um mar de vírgulas que, apesar de não parecer caracterização legal, entendo como mais uma das provocações do autor, na ruptura com o senso comum.
Não vou dizer que é história maravilhosa, coisa e tal, suspirando amores, mas é uma excelente reflexão sobre o obscurantismo e revelação - conclusão final. 
Encerro com o que iniciei: nesse mundo tenebroso, Jesus é a luz que liberta!
"Então Jesus tornou a falar-lhes, dizendo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue de modo algum andará em trevas, mas terá a luz da vida." João 8:12  

Em Macapá, 
é uma das valorosas obras disponibilizadas para leitura na
 Biblioteca Pública Elcy Lacerda.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Zoologia Fantástica do Brasil (Afonso de Taunay)

Tenho empolgação por estudos mitológicos, devido a influência a desdobramentos diversos na História, e também por revelarem conhecimentos surpreendentes e inusitados. Proposta desse livro. 

Título: Zoologia fantástica do Brasil  
Autor: Afonso d'Escragnolle Taunay
Editora: Melhoramentos  
Ano: 193?

Foi publicado na década de 1930, tendo como autor Afonso Taunay, um estudioso do tema e imortal na ABL. Está dividido em 8 partes. 

Destas, a primeira é das mais interessantes, onde o autor resgata estudos de Ferdinad Denis, francês naturalista que viajou pelo interior do Brasil no século 19, resultando em valorosas pesquisas (entre elas, a mitológica).
As impressões são multifacetadas e vários autores são citados, começando por Aristóteles e Plínio da antiguidade clássica. O que há de pioneiros neles, de acordo com os pareceres do livro, é a organização dos estudos biológicos, ainda que em conceitos hoje obsoletos, onde se privilegiava a observação para as conceituações, que eram mais intuitivas que racionais (como acontece com as lendas). Caso, por exemplo, da teoria da geração espontânea, ou abiogênese, defendida por Aristóteles. Perdurou por séculos e influenciou a história com conceitos que também impactaram as navegações e descobertas na Idade Moderna. Observemos que as lendas e mitos misturavam-se com o conhecimento científico na visão de mundo, determinando desdobramentos curiosos.
O autor relata a visão desafiadora para os exploradores diante do que era enunciado; fala de bestiários que se formaram nos idos medievais; da visão de cristianismo que era equivocadamente imposta pelos que se diziam representantes na igreja (criando barreiras desafiadoras para os exploradores); e do medo do desconhecido.
Enfim, a percepção e delineamento do capítulo é o entendimento dos mitos e lendas como fatores determinantes na história, devido o caráter científico a que se associavam.
 

Visão que é detalhada nos capítulos seguintes, onde o Novo Mundo é percebido com expectativas de descobertas zoológicas fantásticas (seres teratológicos), o que em termos se confirmou nas incompreensões no contexto.  

A terceira parte traz os primeiros relatos sobre a fauna americana; a quarta fala de mitos que se projetaram na nova terra (como o Eldorado); a quinta, sobre relatos pioneiros no Brasil; e as últimas partes detalham descobertas sobre a fauna que surpreenderam (como a boiúna, relatada em encontros pra lá de aventureiros, com dimensões titânicas, o que não duvido naquele ambiente, mas certamente também com exageros ante ao desconhecido),  além de mitos indígenas (como boitatá e curupira). 

Gostei, em especial, dos relatos sobre o Ipupiara (mito tupi), vendo-o na linha mitológica do boto, referente a seres dos rios. Explico, e isso não está no livro. Um devaneio...
O que há sobre o boto sedutor e encantador das caboclas é mito que se estabeleceu por influência da colonização e suas convenções sociais. É coisa nascida do colonizador. Na época pré-Cabral não são mencionadas lendas do boto como conhecemos. O que existia no imaginário indígena sobre seres aquáticos humanizados (categoria onde o boto se enquadra) era de monstros que aterrorizavam e afogavam as pessoas. Esses seres eram os Ipupiaras. Observe que a natureza, em suas incompreensões,  tinha interpretação em que os índios concebiam um monstro fluvial (diante do meio selvagem, desconhecido e temido) através da intuição, como faziam estudiosos do passado.
O ser dos rios depois foi configurado em encantador caboclo pelos colonizadores, em contexto para justificar gravidez fora das convenções sociais. Assim, o sedutor boto tornou-se mais conhecido que o monstro Ipupiara (como ainda é hoje). Esse seria um segundo momento na mitologia sobre seres dos rios.
Na atualidade, o mito do boto tem se associado cada vez mais a protetor da natureza, com potencialidade de educador ambiental. A lenda encaixando-se na atual visão de valorização da natureza, segundo o pensamento que se estimula. Um terceiro momento da lenda do boto ou homens aquáticos...
E no futuro, dentro de quadro pessimista (tomara que assim não ocorra) a lenda poderá se condensar apenas no simples avistamento dele, em cenário que tem se levantado de extinção.
 

As lendas são uma viagem e hoje projetam-se de maneiras e interesses diferenciados...   

Vale a conferida para quem tem interesse em estudos mitológicos.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

História de Oiapoque (Sonia Zaghetto, 2019)

Obra valorosa para as pesquisas sobre Oiapoque, trazendo aspectos históricos e pitorescos enriquecedores à limitada produção literária. Volumosa, com mais de 400 páginas, apresenta leitura envolvente, dando a sensação de vários livros em um só.
 
A autora é a jornalista Sonia Zaghetto, neta de Rocque Pennafort, um protagonista na história amapaense, testemunha de transformações na trajetória oiapoquense no século passado, onde foi prefeito e também memorialista, assentando-se o livro no resgate de seus registros. 


Título: 'História de Oiapoque: com o arquivo e as memórias de Rocque Pennafort'
Autora: Sonia Zaghetto
Páginas: 456 
Ano: 2019
Editora: Senado Federal

São cinco as partes: 

A primeira é um passeio pela história, onde destacam-se eventos direta ou indiretamente relacionados à região em cada século. É uma das mais interessantes, proporcionando descobertas curiosas e importantes.
Das histórias quinhentistas registro navegações pioneiras como de Vicente Pinzón, descobridor da foz do Amazonas e o primeiro europeu a navegar o rio Oiapoque (que por anos recebeu seu nome). O seiscentismo traz histórias da França Equinocial; no setecentismo, destaque para a pitoresca história da introdução do café no Brasil; no oitocentismo desponta a disputa pelo Contestado entre Brasil e França (com detalhamentos do famigerado embate no atual município de Amapá); e no novecentismo, a consolidação da região para o Brasil.  
Parte I - Histórias

Rocque Pennafort em sua mesa de trabalho na Prefeitura. 
Arquivo Rocque Pennafort. Foto extraída do livro.
 
A segunda e terceira trazem as memórias de Rocque Pennafort em textos diversos que contam de maneira romanceada a história de Oiapoque no século XX, passando por Clevelândia, instalação da colônia militar, desenvolvimento da cidade e outras narrativas, como a visita de um pesquisador da revista National Geographic. Encontramos biografia de Pennafort, que também foi prefeito em Mazagão.
Parte II - O livro de Memórias de Rocque Penafort - 1976 
Parto na Amazônia - Um navio passa ao longe - O menino, a onça e o fim do medo - A viagem para o Oiapoque - A inauguração - Primeiro registro de nascimento do Oiapoque - Primeiro casamento na fronteira - O navio - Demonti e Martinica - Clevelândia, campo de concentração - "Comecemos a morrê" - Colonos e deportados dividem espaço - Inferno verde - O pega-pega de 1932 - O ouro e o fim - A presença militar no Oiapoque - A revolução do Formiga - A estrada Oiapoque-Clevelândia
Parte III - Outras histórias do século XX
Ramón Renau Ferrer - Jornada ao País dos Índios - Professora - Pilotos, árvores e rios - Anjo viúvo - A ninfa das águas e o Cientista da Nacional Geographic - De Beit Mery ao Oiapoque

Vista parcial da Praça Epitácio Pessoa em Clevelândia. 
Arquivo Público Mineiro. Acervo Artur Bernardes. Foto Extraída do livro.

Na quarta parte, destaque para a história da construção do monumento à pátria (cartão postal da cidade), e para a história dos primeiros vereadores indígenas no Brasil, eleitos em Oiapoque em 1969 (episódio pouco conhecido e ignorado no país). 
Parte IV - O arquivo de Rocque Pennafort: informações para a História de Oiapoque
O Monumento à Pátria - A Avenida FAB - O CAN na Amazônia - O primeiro vereador indígena do Brasil - Os primeiros prefeitos do Oiapoque

 O Monumento à Pátria na década de 80. Arquivo IBGE. Foto extraída do livro.

A última parte traz crônicas regionais de Rocque Pennafort e de seu filho Hélio Pennafort. Textos que apresentam aspectos históricos, com drama e humor, sobretudo curiosos. 
Parte V - Artigos e Crônicas
E agora, Dumont? - Pelos ermos tristonhos dos manguezais - Pelas lonjuras do Curipi - O peixe do Oiapoque - Cassiporé - A festa dos Caripunas no Uaçá - Histórias do cacique Coco - Campesinato escanifrado e forticulídeo - Curiosas e eengraçadíssimas histórias de campanha políticas

O livro tem também posfácio que aborda assuntos da atualidade (como a ponte binacional), cronologia da história de Oiapoque e valoroso anexo com mais de 100 imagens (entre registros históricos raros, mapas e ilustrações). 
PRINCIPAIS DATAS DA HISTÓRIA DE OIAPOQUE (lista parcial, em ilustração)
1493 - O Tratado de Tordesilhas mantém o Amapá entre as terras pertencentes à Coroa espanhola.
1500 - Vicente Pinzon é o primeiro europeu a navegar no rio Oiapoque.
1637 - 14 de julho. Filipe IV da Espanha cria a Capitania do Cabo Norte.
1713 - Tratado de Utrech.
1886 - Em 23 de outubro é proclamada a independ~encia da república do Cunani.
1900 - 1 de dezembro. O Laudo Suíço dá ao Brasil a posse do antigo território contestado, que inclui a região do atual Oiapoque.
1922 - Em 5 de maio é inaugurado o Centro Agrícola Cleveland.
2017 - 18 de março. Inaugurada a ponte binacional que liga o Brasil à Guiana Francesa;

 Antiga Avenida FAB (Oiapoque). Foto extraída do livro.


Gostei bastante do livro! Recomendável para estudiosos e interessados no tema, sendo extremamente valoroso para todas as bibliotecas e escolas amapaenses.

DISPONÍVEL PARA CONSULTAS NA
 BIBLIOTECA AMBIENTAL DA SEMA-AP