As postagens desse blog são em caráter informal, de apego ao saber popular, com seu entusiasmo, exageros, ingenuidade, acertos e erros.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Mãe Luzia, o primeiro "doutô" da região

Texto de Edgar Rodrigues publicado no Informativo GEA
(Jornal Participação - Ano 1 - Nº. 6 - Setembro / 2011).
Mãe Luzia foi uma mulher surpreendente. Descendente de escravos, ela tornou-se a mãe de várias gerações de moradores de Macapá. Suas mãos de parteira tradicional receberam, para a vida, milhares de crianças nascidas no período que vai do início da Intendência de Macapá aos anos iniciais do Território do Amapá. Seu nome cristão era Francisca Luzia da Silva. Nasceu em Macapá em 9 de janeiro de 1854, e faleceu em Macapá, aos 100 anos, em 24 de saetembro de 1954.
Livro de Joseli Dias
O título de "Mãe Luzia" foi-lhe dado pelo coronel Coriolano Jucá, intendente (espécie de prefeito) de Macapá em 1895, que a convidou para trabalhar como parteira, com remuneração de um salário, da Intendência de Macapá.
Também lavadeira, Mãe Luzia passava boa parte do dia curvada sobre a tina de água, nos coradouros (espécie de varais feitos de talas, onde eram colocadas as roupas, após lavadas para serem "coradas" pelo sol equatorial"), manipulando, com maestria, os pesados ferros de engomar que funcionavam pelas brasas de carvão. 
Morava no "Formigueiro", localizado atrás da Igreja de São José, e sempre foi visitada pelas autoridades do Amapá, em busca de conselhos, entre elas o próprio governador Janary Nunes.
Formigueiro (Foto Biblioteca PMM)
Quando lavava as roupas, Mãe Luzia costumava sentar à moda de seus ancestrais, às vezes com os seios expostos, porque "um filho de parto" sempre lhe pedia o peito. Ao receber uma autoridade local, vestia uma bata branca, sempre bem engomada.
Foi casada com Francisco Secundino da Silva, um jovem também filho de escravos, que por força política de Mãe Luzia chegou aos postos de comandante da Guarda Nacional e vereador de Macapá. Ao falecer em 1954, seu sepultamento antecedeu um grande cortejo popular pelas pelas principais ruas da cidade, seguido de um luto de três dias nas repartições públicas.
Mãe Luzia inspirou artistas de todas as áreas, que em versos eternizaram sua coragem e dedicação. Entre eles, o de Álvaro da Cunha:
Mãe Luzia
(Álvaro da Cunha)

Velha, enrugada, cabelos d'algodão
Fim de existência atribulada, cuja
Apoteose é um rol de roupa suja
E a aspereza das barras de sabão.

Mãe Luzia! Mãe Preta! Um coração
Que através dos milagres de ternura
Da mais rudimentar puericultura
Foi o primeiro doutor da região.

Quantas vezes, à luz da lamparina,
Na pobreza do catre ou da esteira,
Os braços rebentando de canseira, 
Mãe Luzia era toda a medicina.

Na quietude humílima do rosto
Sulcado de veredas tortuosas,
Há um clamor profundo de desgosto
E o silêncio das vidas dolorosas.

Oh, brônzea estátua da maternidade:
Ao te encontrar curvada e seminua,
Vejo o folclore antigo da cidade
Na paisagem ancestral da minha rua.

Jornal GEA (Set/2011)